Capítulo 19
1550palavras
2023-02-05 08:07
Parecia um sonho viver a liberdade por um dia inteiro.
Lucy estava tão eufórica que não conseguia parar um só segundo para que Jaesun fizesse a maquiagem em seu rosto de modo correto.
Enfim era o dia do baile de Halloween da escola na qual estudavam. Não era uma data muito comemorada nas ruas com festas ou coisas parecidas, mas as escolas sempre faziam bailes fantasiosos durante a data e isso alegrava muito a garota.
Lucy nunca pôde vestir-se com uma fantasia no qual quisesse mesmo estar, mas poucas eram as opções e a maioria era masculinas, então escolhia uma qualquer ou apenas não escolhia nenhuma, evitando assim até mesmo perder seu tempo e optando por ficar debaixo de seu edredom enquanto todos se divertiam.
Mas naquele ano, no último de sua vida colegial, ela sentia uma estranha e pequena liberdade, e ousava, pela primeira vez optando por uma fantasia que enfim sentia prazer ao vesti-la.
— Como sua mãe reagiu? — perguntou Jaesun, dando leves batidinhas com a esponja no rosto da garota enquanto espalhava com cuidado o cushion por ali. — ela não surtou?
— Ela não surtou mais, você quer perguntar, não é? Depois do dia do cinema ela continuou sem falar comigo, mas hoje já começou a falar algumas besteiras insultuosas...
— Eu não a entendo. — falou Jaesun pensativo. — ela sequer tenta entender você...
— Você sabe como ela é Jaesun...
— Mas você a chamou para ir à psicóloga, não foi? E mesmo assim ela não quis ir.
— Ela me acha errada, Jaesun. Diz que sou um demônio... O que posso fazer? Não dá para obrigá-la. — falou entristecida.
— Isso é tão antiquado. É mais fácil dizer que uma filha tem um demônio do que entender e apoiar?
— Acho que para ela é.
— Ela sequer perguntou o porquê de você ter desmaiado naquele dia que Ryeon te ajudou... Isso me deixa irritado. Ela apenas achou que você estava tentando suicídio, mas se fosse mesmo o caso, ela faria o quê? Se nem conversou nada? Ela só acha que tudo está bem e fica por isso mesmo?
O garoto deixava sua indignação transcender. Parecia hipocrisia querer ditar o certo para alguém quando sequer age em sua própria vida.
Ele via Jungso tentando por Lucy, e até mesmo sentia vontade de ajudá-lo a entender sua própria filha mais e mais, mas Sun-ha... Ela apenas tinha seu ponto de vista como o correto, e se Lucy buscasse outro caminho, a mulher via a agressão física e verbal como solução, adoecendo mentalmente a filha que não tinha culpa de nada.
Mas Jaesun via as marcas, e somente não falava algo até mesmo para a polícia porque Lucy implorava.
— Ela não me ama, Jaesun. — falou a garota, triste e baixo, retirando Jaesun de seus pensamentos. — eu sei disso.
— Ela te disse isso? — parou o que fazia e sentou na frente da garota. — Que cruel.
— Não foi diretamente, mas... Se ela me bate com facilidade agora e sempre diz que causo repulsa e vergonha, como ela poderia me amar? Eu matei o filho que ela um dia teve.
— Você melhor do que ninguém sabe que esse filho nunca existiu. Você nasceu você, nasceu Lucy. Você é uma mulher linda e delicada como tal. Não deixe que nada vindo de sua mãe te ponha para baixo ou te faça achar que sua luta é errada ou nula porque não é. E eu já te disse, ela não vai mais tocar em você, por que eu sou seu amigo, e não permito nada disso.
— Ela não vai mais fazer isso, meu pai garantiu. Eles conversaram por horas, mas tudo o que eu queria era somente que ela me entendesse. — confessou, erguendo os olhos úmidos para o melhor amigo. — Não é tão difícil, é?
— Não, claro que não é. Sua mãe apenas é uma mulher fechada para a vida, é alienada a uma vida que foi ensinada a ela como a correta e infelizmente para ela é somente isso que existe.
— Acho que ela nunca mais irá falar comigo. Ela agora me olha com tanto desprezo...
— Ela irá sim, se não for para apoiar, será para criticar, mas isso não vai te atingir, eu não vou deixar.
Lucy sorriu ainda o olhando. Sentia-se bem com Jaesun, principalmente porque havia sido ele a sua primeira força pessoal para pôr para fora quem de fato era.
Continuou a conversa e a maquiagem ali, sempre ajudando Jaesun com as dicas que via na internet, e separando tudo o que precisava. Ouviu os passos indicando que alguém subia a escada e se atentaram. Sabiam que Sun-ha estava em casa e tentavam evitar ao máximo a mulher naquele dia.
Mas para a alegria de ambos, era apenas Jungso, e o homem carregava consigo uma embalagem presa a um cabide.
— Busquei sua fantasia. — ele disse sorrindo e entregou-a a Lucy. — pedi para lavarem antes de entregá-la, está até passada.
A garota se apressou a buscar o pacote das mãos de seu pai e abriu-o, vendo as listras amarelas da saia evidenciarem rapidamente.
— Tudo bem mesmo eu usar ela hoje pai? — Lucy perguntou cuidadosa. — Eu sei que virá com aquele papo de que sou eu quem decido, mas... Eu sou sua filha, não quero que sinta vergonha por algo que fiz...
— Que bobagem. — falou sentando-se à frente dela e se encantou em como seu rosto estava bonito com a maquiagem. — você só me traz orgulho.
— E a mamãe...? Ela brigará com você por isso...
— Sua mãe precisa entender que você já é quase uma adulta. Você é uma mulher, não é? Ela não tem como mudar isso, e já que você tem autonomia para escolher o que quer agora, nós devemos apenas te dar apoio.
— Mas nem isso ela dá. — falou Jaesun, ainda muito chateado com as atitudes da mulher.
— Jaesun! — Lucy olhou-o.
— me desculpe senhor jeon... — Jaesun pediu inclinando-se numa reverência respeitosa. — mas é só a verdade...
— Eu sei, eu sei. — falou o homem, suspirando cansado. — e me desculpe por ela. — olhou então para Lucy. — eu te entendo um pouco mais agora, e muito obrigado por ter me levado com você até o consultório da doutora Clo. Se sua mãe tivesse ido conosco como você pediu, tenho certeza que ela entenderia também.
— Acho muito difícil ela entender pai, a mamãe só ver e entender o que quer. Ela acha que sou um erro, sabe disso.
— Mas você não é um erro, é nossa filha. Você é uma mulher, e esse tratamento que a doutora Clo está fazendo com você junto ao endocrinologista, fará você ficar ainda mais feminina, não é?
Lucy sorriu, porque parecia que seu pai havia escrito numa folhinha de papel tudo o que a psicóloga havia conversado consigo em sua última consulta. Foi bom ter seu pai ao lado, entendendo-a um pouco mais, mas era claro que, para ser uma mulher, não necessariamente precisava ser feminina. Mas era esse o desejo de Lucy, aflorar a feminilidade de seu corpo, e assim, ela havia optado então por continuar com a terapia hormonal da forma correta, e, além disso, iniciar enfim sua transição social.
Era, de fato, um grande passo em sua vida.
— Vai levar um tempo ainda. — ela disse sorrindo, e seu sorriso era tão grande que contagiava. Como era bom para a garota falar daquilo com seu pai. — por enquanto meu corpo não irá mudar tanto.
— Mas é um começo. — ele sorriu — bom, mas enfim, não quero tomar o tempo de vocês. Ryeon ligou e disse que chegaria em alguns minutos, ele virá com o carro da Roseane e já está com a fantasia dele também.
— Tudo bem, pai, obrigada.
Vendo o pai ir, Lucy apenas recolheu a fantasia e analisou mais uma vez a saia em suas mãos.
Jaesun, eufórico, logo fechou a porta e viu sua amiga endireitar todas as peças que vestiria sobre a cama.
Ele não vestia algo muito elaborado. Era apenas uma fantasia de presidiário, já que Mark havia dito que também usaria uma e assim ambos alugaram juntos.
Lucy achava fofo, porque era claro o interesse recíproco ali. Pensou rapidamente em Ryeon enquanto puxava sua caixa escondida e suspirou.
— O que irá usar hoje? — perguntou Jaesun, interessado quando viu-a sentar-se sobre a cama.
Era incrível como o coração da garota acelerava. Cada peça ali havia sido comprada por ela mesma, escolhidas com cuidado e desejo, mas nunca vestidas além das paredes de seu quarto. Mas como Lucy se sentia livre naquela noite, e com a liberdade, vinha à audácia.
Abriu a caixa e logo sentiu o tecido frio das peças íntimas e delicadas que havia ali. Tocou cada uma com a lembrança e o sentimento de quando as comprara aflorando. A garota sempre quis ter seu corpo de mulher dentro delas, mas não era possível porque partes do "erro biológico" de seu corpo, não a deixava confortável, e assim, as peças permaneciam intocadas, somente a espera do dia de podê-las usá-las.
E enfim, o dia havia chegado.