Capítulo 4
1869palavras
2023-01-19 07:32
Enquanto terminava de escovar os dentes, Lucy olhava como estava seu cabelo.
Havia ousado, permitindo colocar duas presilhas de cor rosa e roxa sob a mesma mecha que Ryeon havia segurado mais cedo, e havia sorrido ao perceber como ficaram bonitas ali.
Cuspiu o último filete de saliva e creme dental, e limpou sua boca, passando água por todo o rosto também.
Sentou-se em sua cama e observou as horas no celular. Ainda eram seis e quarenta, Ryeon viria às sete, e já era possível ouvir sua mãe com suas "amigas" na sala, falando se coisas importantes, como o novo carro da vizinha debaixo.
A mulher havia se mudado há pouco tempo, e trabalhava num escritório "masculino".
Que absurdo era para Sun-ha, uma mulher trabalhar em meio aos homens.
Seu lugar, segundo ela, era em casa, cuidando de um marido, e talvez de filhos, mas não vivendo de aventuras de modo livre, isso jamais.
Lucy enojava-se dos pensamentos arcaicos.
Era uma mulher muito diferente da que havia lhe dado à vida, e isso ia muito além do que apenas o gênero de nascimento.
Buscou a pequena bolsinha que guardava debaixo de sua cama, e buscou suas maquiagens ali.
Ajeitou as sobrancelhas e passou batom, o mesmo de sempre.
Atreveu-se a fazer algo nos olhos, como um delineado, mas enquanto lia as embalagens, vendo se era o de cor preta ou marrom, viu sua porta ser aberta com força, evidenciando seu pai ali.
A garota deu um salto com o impulso do susto, e fechou os pulsos, tentando esconder o que carregava, mas os olhos do homem já estavam ali, percebendo com clareza do que se tratava.
ㅡ Vim avisar que Ryeon está lá embaixo. ㅡ disse desviando o olhar para os olhos assustados da filha.
ㅡ Tudo bem, estou descendo.
O homem assentiu, virando-se para ir, mas parou na porta, ficando daquele modo por segundos afins, até que seu corpo vira e seus pés o levam até Lucy.
ㅡ Está tudo bem. ㅡ disse olhando-a de modo suave. ㅡ entende?
Lucy o encarou de início, não entendendo o que dizia. Mas viu-o apontar, fazendo-a perceber que aquela conversa se tratava da maquiagem que tinha nas mãos.
ㅡ Eu não me importo com nada disso, ainda vou te amar. ㅡ Jungso falou verdadeiro.
ㅡ Papai, o que quer dizer? ㅡ tomou o impulso de perguntar, vendo como o homem parecia aflito.
ㅡ De ser gay, eu ainda vou te amar, Woojin.
Lucy não deveria, mas riu, negando enquanto caminhava até ele para o abraçar.
ㅡ Já tivemos essa conversa antes, não foi?
ㅡ Sim, mas é só uma coisa no qual quero que saiba.
ㅡ Papai, eu não sou gay.
ㅡ Não se preocupe com sua mãe, eu converso com ela se precisar e quiser.
Lucy mais uma vez sorriu e negou, não se permitindo falar mais algo, pois sabia que não mudaria nada.
ㅡ Avise a Ryeon que estou indo, tudo bem?
ㅡ Tudo bem. ㅡ respondeu, deixando um beijo sobre a testa dela e saindo.
Lucy sempre sentia-se acolhida, quente, e feliz quando estava perto de seu pai.
Sabia que ao menos com ele, poderia contar sempre.
Desistiu do delineado, e apenas correu para passar do seu perfume doce.
Passou mais do que necessitava, mas não se importou. Ajeitou o casaco que usava e viu como ele ficava bonito junto à calça folgada e cinza que cobria suas pernas cumpridas.
Saiu saltitante de seu quarto, indo o mais depressa que podia, e encontrou Ryeon encarando a enorme árvore no centro de seu quintal e sorriu para aquilo.
ㅡ O que foi? ㅡ perguntou sentando no balanço de pneu bem abaixo do galho grande que sustentava dezenas de flores.
ㅡ Essa árvore é assustadora ㅡ respondeu, ainda olhando. ㅡ ela me lembra das árvores de filmes de terror.
ㅡ Deixa de bobagem, Ryeon. É uma árvore bonita.
Ryeon sorriu, desviando os olhos para Lucy e admirou como a pele se iluminava bem com a luz do luar.
ㅡ Eu vim te pedir desculpas. ㅡ é o que ele diz, sentando-se no chão, bem em frente a ela.
ㅡ Desculpas?
ㅡ Eu não sei o que fiz mais cedo, mas se te assustei ou magoei, eu quero dizer que foi sem intenção...
Lucy negou, não sabendo de início o que dizer.
Não queria que Ryeon se culpasse de suas bobeiras. Era ela o problema, somente ela.
ㅡ Você não fez nada ㅡ respondeu baixo, impulsionando os pés para que o balanço começasse a se mover sutilmente. ㅡ Eu só precisava respirar um pouco.
ㅡ Você quer conversar um pouco? ㅡ Ryeon tinha os olhos cravados nela. Suas pernas dobradas balançavam de leve, evidenciando o quão angustiado ele também estava.
ㅡ Eu não quero, oppa...
Ryeon apenas assentiu, permanecendo quieto ali, observando-a em suas nuances.
ㅡ Tem algo a mais para falar? ㅡ a garota perguntou se erguendo. Sentia-se envergonhada quando Ryeon lhe olhava como estava olhando aquele momento. Ele sempre parecia que buscava seus detalhes.
O Park também se ergueu, focado demais sobre o rosto dela. Aproximou-se mais, ficando apenas alguns centímetros dela e negou.
E Lucy precisou suspirar.
Por que tão próximo, e tão difícil?
Encaravam-se de uma forma tão intensa que não entendiam o porquê não se aproximavam mais. A força entre aqueles corpos era tão grande que parecia existir um enorme ímã ali, mas era somente a tensão.
ㅡ Por que eu não consigo parar de querer ficar perto de você? ㅡ Ryeon perguntou num sussurro baixo, fazendo o corpo dela tremer.
Lucy engoliu em seco, não contendo seus olhos dos lábios gordinhos do outro. Queria tanto beijá-los e senti-los mais uma vez.
Sentir como as nuvens passeiam pelo céu, assim como sua língua passeou um dia pela dele.
Mas, antes que qualquer movimento fosse feito, ou palavra fosse dita, a porta de trás foi aberta, fazendo ambos darem um sobressalto, observando quem estava ali.
ㅡ Meninos, entrem, não é bom que fiquem aqui sozinhos.
Era uma das amigas e vizinhas de Sun-ha, uma das que amava fofocas.
Ryeon sorriu brevemente para ela, não sabendo o que dizer e apenas assentiu. Lucy segurou firme o pulso de seu amigo e caminhou para dentro, passando rapidamente pelas mulheres e indo de volta para seu quarto.
ㅡ Mamãe realmente não se encaixa nisso ㅡ foi o que Ryeon disse aos risos, subindo as escadas.
A garota concordou. Com certeza a senhora Park não se encaixava naquilo.
Soltando o pulso do outro já no andar de cima, Lucy abriu a porta e passou primeiro. Ryeon já conhecia bem o lugar, não era a primeira vez dele ali, então apenas seguiu-a e fechou a porta.
A garota sentou-se sobre sua cama, dobrando as pernas e sentindo o coração pulsar. Viu Ryeon caminhar e parar a sua frente, sentando-se da mesma forma, e entrando em um absoluto silêncio.
Lucy sentia-se estranha.
Na verdade, sentia que tudo estava estranho.
Olhou para seus próprios pés, mas desviou o olhar para os de Ryeon. Seus dedos estavam encolhidos, mas brincavam uns nos outros e por vezes com o tecido azul da colcha.
Ela mordeu o lábio inferior, não sabendo o que falar ou perguntar, mas viu Ryeon se inclinar e sorrir.
ㅡ O que é aquilo? ㅡ perguntou apontando para baixo.
Lucy olhou em direção e viu que Ryeon apontava para a sua caixa de segredos. Arregalou os olhos, com medo, mas antes que dissesse algo, viu o garoto se inclinar e capturá-la com suas mãos.
ㅡ Não é nada ㅡ disse rápido, esticando-se para pegar, mas Ryeon sorriu, levando aquilo na brincadeira, e abriu-a sem ao menos se importar.
Seus olhos foram rápidos de encontro ao tecido preto e fino logo acima. Fitou o potinho transparente com pílulas coloridas, mas Lucy buscou-o e escondeu-o com rapidez. Ryeon fitou-a com o cenho franzido, mas foi levado pela curiosidade, tocou o tecido e puxou-o, erguendo e analisando.
Era um vestido.
ㅡ De quem é isso?
Lucy se desesperou, puxando-o para seu peito, a fim de esconder aquilo junto a suas pílulas.
Mas Ryeon não entendeu, e viu que como aquele vestido, havia outros naquela caixa. Puxou-os sem rumo, vendo as peças em suas mãos, analisando as saias e sutiãs.
Não sabia o que pensar, mas viu como Lucy os puxou rápido de seus braços e devolveu a caixa, fechando-a e devolvendo ao mesmo lugar.
ㅡ De quem é isso? ㅡ Ryeon não sabia nem o que pensar. ㅡ Que remédio era aquele?
ㅡ Está na hora de você ir, Ryeon ㅡ disse, ficando de pé e caminhando até a porta.
ㅡ Woojin! ㅡ Ryeon ficou de pé, e foi até onde a garota estava, mas viu o modo em como ela desviou o olhar, não querendo encarar-lhe. ㅡ O que é tudo isso?
ㅡ Ryeon, por favor...
ㅡ Você tem uma namorada, é isso?
ㅡ Claro que não...
ㅡ Então porque não me conta nada? Não confia em mim?
ㅡ Você não entenderia ㅡ respondeu baixo, engolindo o bolo que já se formava. ㅡ Por favor, vá.
ㅡ Woojin... aquilo é seu? ㅡ Ryeon tentou entender, tentou fazê-la lhe contar enquanto seus dedos iam de encontro à bochecha cor de marfim que ela tinha.
ㅡ Não ㅡ Mas Lucy negou, não suportava ouvir Ryeon a chamar daquele jeito, perguntando aquilo, doía demais porque saberia que nunca entenderia. ㅡ Não quero falar sobre isso, apenas vá embora, por favor.
ㅡ Mas...
ㅡ Apenas vá, Ryeon. ㅡ tocou-lhe no pulso outra vez, mas diferente de antes, o puxou em direção à porta. ㅡ Depois a gente se fala.
E antes que o garoto pudesse falar qualquer outra coisa, já estava do lado de fora e a porta era fechada.
Ryeon ficou por segundos perdido ali, apenas encarando a porta, sem entender nada. E do outro lado, a garota já entrava em mais uma de suas crises de choro.
Perguntava-se até quando viveria daquele modo, às escondidas e em fugas.
Até quando viveria sem ser ela mesma?
Caminhou até sua cama, com seu rosto já banhado por lágrimas. Buscou o vestido no qual foi visto por Ryeon e colocou-o sobre o corpo.
Lembrou-se de quando juntou suas economias e comprou-o às escondidas.
Não pôde provar no momento, pois disse para a vendedora que lhe atendia que seria para sua irmã mais jovem, mas assim que chegou em casa, trancou-se e vestiu-o, sentindo-se livre, enquanto estava presa no quarto.
Minutos depois chorou, do mesmo modo como fazia naquele momento. Sabia que não teria momento ou liberdade para vesti-lo, então aquele seria somente um pedaço de tecido para lembrar-lhe de tudo.
Sentiu vontade de rasgá-lo e queimá-lo, amargurada por tudo o que lhe enchia, mas juntou-o junto às saias e dobrou-os com cuidado, fungando e se lamentando, sentindo como cada um ali tinha um breve significado de momentos certos em sua vida.
Após guardá-los e devolvê-los a seu lugar escondido, ela deitou sobre a cama e cobriu-se por completo, limpando enfim as lágrimas.
Suspirava aliviada, recuperando sua respiração, mas ainda sentia sua mente turbilhonar com todas as suas dores.
Quando... Quando ela seria livre, então?
Será que algum dia?
Lucy sentia que seria mais fácil morrer, do que conseguir ser livre.