Capítulo 96
1278palavras
2023-02-03 18:00
O grande dia chegou!
Quase um ano de espera foi mais do que suficiente para que eu me preparasse para aquele momento. Eu conversei com psicólogos, pedagogos, com pais que tinham filhos com o temperamento igual ou parecido com o da Morgana, para entender o que se passava na cabeça dela, e tentar ajudá-la da melhor maneira possível. Passei a ter, pelo menos, duas conversas por mês com Bernardo, quem melhor do que ele para me ajudar com a própria filha, não é? E quando o grande dia chegou, eu me sentia em paz e pronta para mais aquele desafio.
Fui questionada, durante muito tempo, o porquê de estar fazendo aquilo. Porque, eu, uma jovem recém casada, ao invés de pensar em ter os próprios filhos, estava tentando ajudar uma adolescente rebelde a mudar de vida. Desde quando fundei a ONG florescer, eu aprendi que a minha vida não teria sentido nenhum se eu a vivesse apenas para mim. Ela só teria sentido quando eu passasse a viver em prol do meu próximo. Esse era o sentido da minha vida, do meu trabalho e do meu amor: as pessoas. Morgana não era o monstro que todos descreviam ou pré-julgavam. Ela era só uma menina perdida, que nunca experimentou o amor materno, que cresceu em meio a violência doméstica. Que foi ferida, rejeitada, que nunca teve amigos, que aprendeu a se virar sozinha, desde muito cedo. O mundo estava cheio de casos como o dela. De seres humanos que cresceram aprendendo a lidar com a dor e o sofrimento de uma infância destruída, e que se tornaram pessoas boas, porém cada caso tinha suas peculiaridades e cada pessoa tinha sua própria maneira de encarar a vida.

O Allan me dizia que eu estava ansiosa demais por aquele momento, toda hora arrumava o mesmo lugar, conferia os mesmos detalhes. Olhava as horas no relógio que pareciam não passar. Quando bateram à porta de casa, eu quase tive um infarto. Eu vi aquela menina triste, extremamente magra e abatida entrar pela porta e meu coração se partiu em mil pedaços. Sempre de cabeça baixa, Morgana não olhava para mim, nem para o Allan.
— Seja bem-vinda, Morgana – eu disse, toda sorridente – agora essa será a sua casa.
Ela levantou a cabeça, timidamente, passando os olhos por toda a casa e seus olhos brilharam. Mas ela estava diferente. Não era a mesma menina que eu conheci há dois anos. Estava calada, ressentida, quieta. Talvez fosse normal, por todas as coisas pelas quais ela passou nos últimos tempos. Não queria nem imaginar os horrores que ela deveria ter passado naquele abrigo. E foi assim durante algum tempo. Sempre tímida, pouco falava, mas a princípio obedecia tudo o que eu e o Allan pedíamos para que ela fizesse. Resolvemos respeitar o seu tempo de adaptação e quando fosse o momento certo, as coisas aconteceriam naturalmente.
Eu tentava ajudar o Allan a se entender com dona Francisca, que fazia uma tempestade em copo de água toda vez que o assunto era a Morgana. Eu odiava ver ele triste, mas era assim que o Allan estava nos últimos dias, triste, porque a dona Francisca mal falava com ele. Ao contrário dela, meus pais traziam presentes e se esforçaram para se adaptarem à nossa nova realidade. Com o tempo Morgana foi se soltando, se acostumando.
— Eu nunca fui tratada assim em toda a minha vida – ela dizia.
— E isso é bom? - eu perguntei.

— A melhor coisa – ela sorriu – o painho me disse que eu ia gostar de morar com vocês, e ele estava certo.
— Fico feliz em saber – Allan disse – quando quiser visitar o Bernardo, é só me falar que te levamos lá.
— Sinto muita falta dele – ela se lamentou – foi o único que tentou cuidar de mim.
Então eu vi uma tristeza diferente no olhar do Allan.

— Sua mãe – ele voltou a falar – antes de morrer, me pediu para que eu cuidasse de você. Ela não queria que tivesse a mesma vida a qual ela teve.
— Vindo da Emília, até me surpreendi. - pareceu realmente surpresa.
— A possibilidade da morte causa esse efeito nas pessoas – eu comentei.
— A pois – ela sorriu – talvez esse tenha sido o único momento em que a Emília tenha desejado o meu bem em toda a vida.
— Eu lamento muito que as coisas tenham sido assim – Allan falou.
— Eu também – então uma lágrima riscou os olhos dela – por isso eu prometo que tudo vai ser diferente a partir de hoje. O desejo da Emília vai se realizar. Eu não quero ser igual a ela.
—Avalie só – meus olhos encheram-se de emoção – não sabe como eu fico feliz em ouvir isso, visse.
Então eu a abracei. Observei o Allan admirar aquele momento, porque no fundo ele foi o único que acreditou desde o começo que aquilo daria certo.
— Obrigada, Allan – Morgana também chorava – obrigada por cuidar de mim e por acreditar que eu podia ser salva.
—Me agradeça seguindo por esse mesmo caminho que guiamos você – agora ele também chorava – e no final dele, vai perceber que valeu a pena.
Éramos uma família feliz.
E Morgana tentou cumprir a promessa que nos fez, de ser diferente da própria mãe. Se tornou uma menina totalmente focada nos estudos, e apesar dos seus defeitos, como qualquer outro ser humano, no final ela deu o seu melhor. A adolescência foi a fase mais difícil, mas não a culpamos pela mudança de humor. Ela foi uma das escolhas mais certas que fizemos, porque no fim conseguimos salvá-la e ajudá-la a ter uma vida digna.
Com o tempo dona Francisca foi baixando a guarda. Ela observava Morgana e percebia que estava enganada em relação à jovem menina. Foi difícil ela dar o braço a torcer e reconhecer que havia sido injusta. Mas quando menos esperamos, lá estavam as duas, lanchando juntas em uma tarde de verão, comendo o bolo de macaxeira, tão famoso de dona Francisca.
Três anos depois que adotamos Morgana, eu engravidei e tivemos nosso próprio filho. Era um menino a qual eu dei o nome de Jacob. Painho quando soube disso, chorou de felicidade, e logo Jacob tornou-se o xodó de seu Chico. Bentinho apareceu no batismo de Jacob. Estava diferente, até o modo de falar dele era outro, visse. Depois de alguns anos, compramos nossa casa e fomos morar no litoral de Pernambuco. Não era a fazenda antiga dos meus sonhos, mas era uma linda casa à beira do mar. Passei o comando da ONG para Betânia, que se casou com Fábio. A tamborete de zona, mesmo que quase todos os anos viesse me visitar, fazia muita falta. Às vezes é necessário deixar algumas pessoas para trás, para que outras possam entrar em nossas vidas.
No final, Fernando de Noronha se tornou o meu destino favorito. Eu ainda caminhava por aquelas ruas carregando as lembranças de uma vida inteira. De uma infância tão bem vivida, de momentos tristes e dolorosos. De aflições e felicidades instantâneas. Fernando de Noronha tinha um pedaço de mim em cada esquina, em cada praia, em cada mar. E um dia, eu iria voltar a morar ali, quando estivesse bem velhinha, ao lado do único homem que amei a minha vida inteira, para morrermos em paz. Porque a vida tem seus altos e baixos, tristezas e alegrias, mas no final o que importa, é a nossa marca que deixamos no mundo.
Fernando de Noronha, 24 de novembro de 2022
Com amor, Charlote e Allan.