Capítulo 74
1763palavras
2023-01-24 08:15
Durante muitos dias eu pensei sobre aquilo e orei fervorosamente para que Deus não deixasse meu filho partir mais uma vez. Apesar do luto pela morte de Jacob, o Allan parecia feliz em estar ali. Ele aproveitou cada segundo que esteve em Fernando de Noronha, e quando voltamos para a nossa antiga casa eu tive um punhado de esperança de que, aquele cenário aquecesse o coração do meu filho e ele decidisse, enfim ficar.
Mas não foi o que aconteceu.
No dia seguinte, o Allan estava pronto para partir, e nem a presença de Charlote naquela manhã impediu ele de seguir o seu rumo. A tristeza que tomou conta do meu coração quando ele saiu naquela porta foi a boléu. Eu ficaria anos sem ver o meu único filho, era o que eu mais pensava, e por mais que eu soubesse que criamos os nossos filhos para o mundo, eu sabia que ele só seria feliz aqui, ao lado de Charlote.

Eu ainda chorava, enquanto catava os feijões para o almoço, quando escutei um carro estacionar em frente a casa e a voz de Charlote preencher todo o vazio.
— Dona Lúcia – ela falava e eu estranhei o tom de alegria que vinha dela – pode vir aqui? Tenho uma surpresa.
— Oxente! – me levantei enquanto sussurrava para mim mesmo na cozinha vazia – Não tem nem uma hora que essa menina saiu daqui aos prantos por causa do Allan, e volta alegre como se nada tivesse acontecido? Mas que diacho deu nessa menina?
Então me apressei para ir até lá e descobrir que surpresa era aquela. Eu quase infartei quando olhei nos olhos do meu filho mais uma vez. Meus olhos se inundaram. Não era possível. Allan estava lá, com as malas nas mãos, sorrindo para mim.
— Mas que diacho é isso? – com a mão no peito e a outra enxugando as lágrimas, eu perguntei, porque realmente não acreditava.
— Que pergunta besta é essa, Mainha? – largou as malas no chão e abriu os braços – eu vou ficar em Fernando de Noronha. Venha me dar um abraço.

Um sorriso de pura felicidade e quando eu percebi já estava lá, abraçando-o por ter passado uma hora longe de casa.
— Avalie só – eu o soltei me afastando – todo esse reboliço para no final, decidi ficar.
— Agradeça a Charlote – ele agarrou na mão dela, olhando com carinho – ela foi o motivo. Sempre foi.
Sorri para ela como mais uma forma de gratidão.

— Sua mãe estava certa – me aproximei dela – quando me disse que você daria um jeito de fazer o Allan ficar.
E eu a abracei. Foi quando o Natalino cruzou pela porta fazendo a mesma expressão de espanto que eu fiz quando vi o Allan em casa.
— Oxente! – ele dizia – O que você ainda faz aqui, cabra? Já era para estar em São Paulo.
— Eu não vou mais painho. – Allan respondeu, mas Natalino demorou entender.
— Deixe de leseira, menino – fazia cara de bravo – você combinou com o seu Agenor. Vai deixar o homem na mão agora?
— Até parece que o senhor não quer que eu fique – Allan sorria dele – Sobre o seu Agenor não se preocupe, meu compromisso com ele continua de pé.
— Continua? – Charlote e o Natalino perguntaram no mesmo segundo como uma sintonia de dúvidas.
— Bentinho vai no meu lugar. – respondeu, contente.
— Você está falando sério, meu filho? – Natalino se aproximou dele, segurando-o pelos ombros.
— Claro que sim painho – respondeu – eu nunca mais piso meus pés para fora de Noronha.
E eles se abraçaram. Mas apesar de toda a alegria pela permanência do Allan, Charlote parecia preocupada. Eu podia até imaginar uma nuvem negra encobrindo seu céu azul. Mas o Allan, com toda a sua empolgação e romantismo, sem nem perceber, fez ela esquecer, por um tempo, suas aflições, quando a pediu em casamento, ali no meio da nossa sala.
Pronto! Parecia tudo perfeito. Allan estava feliz ao lado de Charlote e eu aliviada por ele ter decidido ficar. Então deixei eles conversando na sala e corri até a cozinha para preparar um almoço especial para aquele momento. Apanhei o celular de cima da geladeira e liguei para a Lúcia, pedindo que ela e seu Chico fossem até lá em casa porque o almoço seria por minha conta. Nós duas até pareciamos duas abiloladas com aquele momento. Sorrisos de orelha a orelha fazíamos planos para o futuro casório entre nossos filhos.
— Eu te falei que Charlote daria um jeito – ela comentava contente por ter acertado sobre o fim dessa história.
— A pois – disse – não sou somente eu boa em intuições, visse. Já posso te coroar como uma boa aprendiz.
— Me espanta você, sendo boa nisso, não tenha sentido que o Allan ficaria aqui com a gente.
Eu também estranhei. Minha intuição nunca falhava, mas em momento algum eu imaginei que as coisas terminariam daquele jeito. Pelo contrário, eu só conseguia sentir medo e tristeza pela sua partida.
— Mas eu me sinto aliviada – comentei – pela primeira vez minha intuição falhou.
— E foi? – ela mexia a panela enquanto falava comigo.
— Estava sentindo que algo de muito ruim aconteceria com o Allan – falei, enquanto forrava a mesa com uma toalha – eu pensava até que o avião poderia cair com ele lá dentro. Avalie só, mulher o meu desespero.
— Graças a Deus nada aconteceu – ela levantou uma das mãos para o céu e depois fez um sinal da cruz – talvez porque ele tenha desistido da viagem.
— Pode ser – disse, mas não tive certeza.
Foi quando o Allan entrou na cozinha e foi uma faladeira só, Bentinho dizia uma coisa, Charlote dizia outra e a voz do Allan se misturava com o restante e ninguém conseguia entender absolutamente nada do que os garotos diziam.
— Oxente! – Lucia parecia azoretada – mas que confusão dos diabos é essa?
— Desculpe, Mainha – Charlote sempre tão respeitosa, tomou a frente – nós estávamos discutindo sobre a ida de Bentinho para São Paulo.
— Mas que história é essa menina? – De repente Lúcia foi ficando branca feito a neve.
— Calma, Mainha – Bentinho correu para socorrê-la – eu vou te explicar tudo visse.
Eu fiquei com pena da Lúcia, os meninos a arrastaram para a cadeira, obrigando-a a se sentar. Preparamos uma garapa e oferecemos antes dos meninos começarem a contar a história toda.
— Decidimos que eu vou no lugar do Allan para São Paulo. – Confessou Bentinho.
— De repente? – seus olhos se inundaram e os meus também – mas que história mais besta é essa?
— Vai ser uma oportunidade incrível para mim, Mainha – Bentinho justificava – e a senhora sabe que não dá mais para mim ficar em Fernando de Noronha.
Ela sabia, porque o silêncio que se prolongou respondeu por ela.
— Eu garanto a senhora, Dona Lúcia – Allan tomou a frente – que o Bentinho vai trabalhar com as pessoas mais incríveis desse mundo. São profissionais e seres humanos maravilhosos. Tenha certeza de que Bentinho estará em boas mãos.
— Mas é uma loucura – ela gesticulava – ele não conhece ninguém por lá. Vai ficar perdido...
— Eu já sou um homem, Mainha – se defendeu Bentinho – Além do mais, não há nada que me prenda em Noronha, como prende o Allan. Confia em mim?
Ela olhou para o Bentinho, depois olhou para mim.
— Sinto muito que para o Allan ficar, o Bentinho tenha que ir – me aproximei dela, puxei uma cadeira, me sentei e olhei bem em seus olhos – parece uma troca injusta, mas acredite, vai ser bom para ele. Olhe só para o Allan e veja no que ele se transformou.
Ela demorou para responder. As lágrimas desciam incontrolavelmente.
— Você está certa – sorriu, parecendo se conformar – não quero ser uma mãe chata te impedindo de lutar pelos seus sonhos.
Bentinho a abraçou.
— Obrigada, Mainha.
— Meu coração está acochado de tristeza – apertava o garoto como se não houvesse amanhã – mas vou te apoiar sempre, meu filho. Se é isso que você quer, então assim será.
Todos choramos, sem exceção de ninguém. Foi então que o Allan se virou até mim, como se lembrasse de algo muito importante que precisasse falar e disse:
— Preciso ir lá no Mateus – falava animado – prometo não me demorar.
— Mas o almoço está quase pronto menino – eu não concordei e aquela sensação de algo ruim voltou com tudo – deixe para fazer isso depois, Allan.
— Eu prometo que vai ser rápido, Mainha – ele insistia – Bentinho vai comigo.
Eu queria gesticular, implorar para que ele não fosse, mas não deu tempo, antes que eu abrisse minha boca, Allan já não estava mais lá. Deu um beijo rápido em Charlote e saiu correndo, como ele fazia quando era criança, para que eu não o impedisse de aprontar.
Eu terminei de preparar o almoço, com o coração aflito. Orei baixinho, pedindo para que Deus protegesse meu filho de todo o mal. Mas as horas foi passando e minha aflição aumentando. Chico e Natalino almoçavam e eu não conseguia colocar um grão de arroz na minha boca.
— O Allan já era para ter voltado – resmunguei – ele me prometeu que seria rápido.
— Calma, Dona Francisca – Charlote dizia – sabe como o Allan fica quando se junta com os amigos, né? É compreensível.
— Tem alguma coisa de errado.
Então coloquei a mão no peito e a sensação explodiu, como se eu tivesse acabado de levar um tiro. O copo que eu segurava caiu estraçalhando em mil pedaços.
— Você está bem Francisca? – Lúcia perguntava, mas eu sentia como se a sua voz estivesse longe demais.
— Alguma coisa aconteceu – minha voz entrecortada – o Allan...
Minutos depois o Bentinho entrou em casa correndo. A expressão no seu rosto era de pura aflição. Sua respiração descontrolada. Ele parou ainda na entrada da cozinha, com os olhos inundados de lágrimas, e suas mãos tremendo. Suas mãos com sangue.
— O Allan... – ele dizia, mas não conseguia continuar.
— O que tem o Allan, Bentinho? – Charlote caminhou apressada na direção dele. Estava desesperada.
— Um tiro...
Depois disso eu não me lembrei de mais nada.
Escuridão!
Eu apaguei.