Capítulo 72
1920palavras
2023-01-18 21:58
Um temporal caía lá fora. Até parecia que Noronha também chorava com o meu sofrimento. Os minutos iam passando, e com ele a certeza que o Allan não voltaria mais. Ele não mudou de ideia, foi um cabra frouxo, me abandonando pela segunda vez e eu nada mais podia fazer para evitar isso. Então me levantei, arretada e a primeira coisa que fiz foi abrir aquele guarda-roupa e arrancar de lá aquele urso maldito e aquela camisa que Allan havia me dado há quinze anos, antes de partir. Porque diacho eu guardei isso por tanto tempo? Me questionei antes de enfiá-los no primeiro saco que vi pela frente, amarrar com desmantelo e jogá-los na lixeira que eu tinha no meu quarto.
Meu coração pulava no peito. Minha respiração estava descontrolada, e milhões de sentimentos ruins tomaram conta de mim. Solidão, medo, tristeza, raiva, insegurança. E eu desabei. O mundo desabou, porque agora a ficha caiu que eu era obrigada a esquecê-lo e seguir minha vida sem ele. Mas aí veio o arrependimento, a saudade, a esperança.
Apanhei a sacola do lixo e tirei de lá a camiseta que eu prometi que guardaria para sempre. Chorei de novo, porque no fundo eu ainda acreditava que ele desistiria dessa loucura toda e voltaria para mim. Allan estava saindo um belo de um cabra frouxo. Então senti minha barriga gemer de fome. Me acalmei, limpei as lágrimas, me levantei e saí do quarto. Não havia motivos para ficar ali, me lamentando, já era tarde demais.
Estava sentada na cozinha, mexendo o cuscuz de um lado para o outro, no prato, fazendo os farelos cair sobre a mesa, quando Mainha se aproximou.
— Está borocoxô assim, por causa do Allan, é?
Levantei minha cabeça, olhei para ela, mas não tive forças pra responder.
— Oxente, minha menina – acariciou meus cabelos – se ele te ama como diz amar, e é o que me parece, ele vai desistir de voltar para São Paulo, nem que seja no último minuto.
— É tarde demais, Mainha – uma lágrima caiu bem no meio do cuscuz – E eu que tanto me queixo da falta de coragem de Allan, em momento algum pedi para ele ficar.
—Talvez os seus olhos já dissessem tudo – passou o dedo sobre minhas bochechas, enxugando minhas lágrimas – Não cometa os mesmos erros do passado, Charlote. Lute por esse amor. Não desista dele assim, tão facilmente.
— Não teve um dia sequer, durante esses quinze anos, que eu não tenha lutado por esse amor – enxuguei as lágrimas – é por isso que ainda estou aqui, com o coração destruído, mas acreditando que ainda há um jeito.
— Então não fique aí chorando como se o mundo fosse acabar – ela dizia, tentando me encorajar – levante-se e lute.
— Mas como, Mainha? – perguntei azoretada – tem uma tempestade lá fora e a essas horas o Allan já deve ter partido.
— Mas sabemos onde encontrá-lo – ela parecia animada com a ideia – sempre sonhei em conhecer São Paulo mesmo.
Então um sorriso brotou dos meus lábios.
— Eu como sua mãe, – ela acariciava meus cabelos – deveria ter te incentivado mais a lutar pelos seus sonhos. Eu falhei.
— Não diga isso, Mainha – segurei firme em suas mãos – você fez o seu melhor e era o que eu precisava naquele momento. Lembra quando enfrentou o diretor da escola para me defender da Emília?
— A pois – agora ela também chorava – Aquele cabra safado merece umas boas chapuletadas para aprender a educar a própria filha, visse. Que Deus o tenha.
— Foi a senhora que esteve lá quando eu quase morri – fiz outra lágrima cair dos olhos dela – e era você que me incentivava todos os dias a cuidar da minha saúde. Portanto, não há nada do que se lamentar. Somente a agradecer por ter uma mãe tão maravilhosa como você. Nem todo mundo tem essa sorte.
Então um abraço acochado nos calou.
— Você é uma benção na minha vida.
Me soltou, me olhando sorrindo.
— Que diacho! – disse, se afastando - se o Allan não aparecer por aquela porta daqui há algumas horas, nós iremos atrás dele amanhã mesmo. E só voltamos com ele escondido na mala, visse.
Rimos, juntas e um abraço acochado eu recebi dela.
Então minha voz foi silenciada pela chuva que batia com força ainda no telhado. Ela se afastou e foi para o fundo da casa. E eu fiquei ali, buscando forças para não desistir, para continuar ou até mesmo lutar por aquele amor. Pensei por um momento em ir até o aeroporto, mas era tarde demais. Foi então que eu ouvi aquela voz, que gritava o meu nome lá de longe. Girei minha cabeça rapidamente para a porta da rua e reconheci o som.
Um sorriso brotou!
Era o Allan!
Quinze anos depois…
Enfim, o amor.
Eu corri em direção a porta e bati com força meu joelho na quina da mesa de centro. Aquilo me fez parar por alguns segundos e eu quase chorei de tanta dor. Tinha um buraco na minha perna e o sangue começou a aparecer.
“Que leseira, Charlote”
Então ele gritou meu nome de novo e eu fui ao seu encontro mesmo com o joelho lascado.
Ele estava lá parado na porta, debaixo de chuva. Eu mal acreditei que a cena se repetia.
— Oxente, Allan! – Falei, mal acreditando que ele estava ali – saia da chuva hômi.
— Charlote, eu… – sua fala foi interrompida pelo fôlego que lhe faltava – eu vim buscar uma coisa que deixei aqui há quinze anos.
— Uma coisa? – Caminhei em direção a ele. Então ele olhou para minha mão esquerda onde eu segurava a camisa dele e entendi tudo – A pois! Que leseira a minha.
— Saia da chuva, sua doida – falou e riu – eu me lembro de cada detalhe daquele dia.
Então ele segurou no meu braço e me arrastou para o fundo pelo estreito corredor ao lado da casa. Então parou, olhou para mim. Do outro lado da rua, na casa do vizinho rolava uma canção das antigas, chamada: Take That – Back For Good.
— Então a gente chegou aqui – ele apontou para a garagem sem carro – e nos abraçamos, e você disse que me amava e eu disse…
— Que me amava também – comecei a chorar, emocionado por Allan ainda se lembrar de tudo aquilo – disse que não queria ir embora e me beijou.
— Dona Lúcia ficou arretada que só quando nos viu aqui – ele riu – ela foi a primeira a perceber o que acontecia entre a gente.
— E, não é? – Então olhei de novo para minha mão esquerda e me lembrei do que ele veio buscar – Eu me lembro que antes de partir você tirou essa camisa me fazendo prometer que eu a guardaria para sempre. Aqui está o que você veio buscar.
Estendi a mão a ele. Allan olhou para mim, azuretado e depois sorriu.
— Não foi isso que eu deixei aqui quando parti – fez uma pausa – Foi você.
— Mas… – Gaguejei – o seu voo para São Paulo, você vai perder.
— Eu não me importo – então ele se aproximou, passou o braço sobre a minha cintura – o que eu senti naquele dia antes de partir eu estou sentindo exatamente agora. Eu não quero ir embora Charlote, eu quero ficar com você para sempre.
O silêncio falou por mim. Eu abri um sorriso escancarado que foi interrompido pelo beijo longo, demorado e cheio de todo aquele amor que eu guardei por todos aqueles anos, que eu dei bem na boca dele.
— Tem até trilha sonora! – Sussurrou no meu ouvido – não tinha isso da última vez, aliás está faltando alguma coisa.
— Nunca mais faça isso, visse – me referia a partida, que não aconteceu, para São Paulo – essa sua indecisão quase me matou de tanta aflição.
— Eu sempre quis ficar – me disse – o que me faltava era só um pouquinho de coragem.
Allan estava abestalhado com aquele momento, como nostalgia, queria que fosse igual ao passado, mas dessa vez com um final tão diferente.
— Oxente! – Olhou para os lados como se procurasse alguma coisa – cadê dona Lúcia que não aparece? Esse não é o roteiro do filme.
— Deve ter esquecido a fala dela.
— Pelo menos esse, tem um final feliz.
E nos abraçamos, ensopados pela chuva. Fazia frio em Noronha naquele dia, coisa rara. Então corremos pelo mesmo corredor, e entramos pela mesma porta que eu sair minutos atrás. Mainha estava parada no meio da sala com uma mão na cintura e a outra segurava um pano de prato.
— Oxe, Oxe, Oxe – achamos graça, agora estava tudo perfeito – que diacho vocês fazem nessa chuva?
Então Allan foi até ela e a abraçou. Mainha não se importava nadinha de ser molhada pela roupa encharcada dele.
— Não vai perguntar o que eu estou fazendo aqui, dona Lúcia? – Ele a questionou.
— Deixe de leseira, menino. Tenho certeza que atrás de mim que não foi – ela sorriu – eu sabia que você ia ficar. E se não ficasse, amanhã mesmo eu iria de buscar de volta.
— Seria exagero se eu disser que tenho uma sogra de ouro?
Então Allan fez mainha chorar, mas uma vez. Eu conhecia o carinho enorme que ela tinha por ele. Era como um filho, porque foi criado junto conosco e ela amou ele como amou todos nós.
Bentinho ainda estava lá, esperando por ele. Trocamos de roupa, entramos no carro e voltamos para a casa de Allan. E pela segunda vez naquele dia eu chorei, por ver a alegria dos pais dele por saber que o filho ficaria.
Enquanto comíamos bolo e tomávamos o café de seu Natalino, ao som de uma chuva boa, Allan pela milésima vez em pouco mais de dez minutos olhou para mim sorrindo:
— Eu vou emoldurar aquela camiseta – fez um gesto com as mãos como se imaginasse ela já na sua frente – Vou pendurar ela no meio da nossa sala, para quando a gente casar nos lembrarmos o quanto o nosso amor durou.
— Você está me pedindo em casamento? – Brinquei.
— A pois! – Levantou-se, então se ajoelhou diante de mim, aliás diante da família inteira – Charlote Lauren, você aceita casar comigo?
— Deixe de brincadeira, Allan – sussurrei porque me custou mesmo acreditar que aquilo estava acontecendo – Não se avexe, hômi. Ainda teremos tempo para isso.
— Eu esperei quinze anos por isso – segurou em minha mão, tirou um anel que ele tinha no dedo – não quero esperar mais nem um minuto.
— Oxente! – Coloquei a outra mão no coração porque achei que ele ia fugir – de onde saiu esse anel?
— Ah! – ele parou, olhando para o anel – é uma longa história, que eu venho guardando há quinze anos.
Ele continuava ajoelhado, desviou o olhar do anel e pousou nos meus.
— Aceita? – perguntou de novo –
Ou vai me fazer esperar por mais...
Então eu o silenciei com um beijo.
— Eu aceito, Allan Gesser – respondi com um sorriso.
E eu disse sim. O sim guardado por tantos anos. Por um amor que resistiu até mesmo ao tempo.