Capítulo 17
1963palavras
2023-01-09 08:00
No dia seguinte, já na sala da diretora, eu observei aquela figura feminina a adentrar o ambiente, feita a rainha da cocada preta. Sempre com o nariz empinado e a postura soberba, Emília cumprimentou a diretora Carmem e apenas ela, o que não me surpreendeu nadinha.
Antes de vir para a escola eu conversei com Betânia e implorei para que ela não me abandonasse, porque sabíamos que esse caso seria um dos mais difíceis de se resolver por envolver Emília, mas não teve jeito. Agora ali estava eu, Fernandinho e aquela metida da Emília, mais uma vez, frente a frente.
— Oxente – ela olhou com desdém para mim – o que essa jabulani e seu fiel cão escudeiro fazem aqui?
“Fi duma égua” eu me segurei para que minha raiva não se materializasse em um belo tapa que eu daria nas fuças dela.
— Charlote e Fernandinho estão aqui para resolver um problema, que a meu ver, é você, e envolve a sua filha.
Eu tive vontade de abraçar a dona Carmem por dizer algo tão simples, mas verdadeiro.
— Não entendi o que a senhora quis dizer, visse – Emília revirou os olhos.
— Além de metida a cavalo do cão, é aruá – soltei minha raiva – Esse seu lado eu não conhecia, Emília.
— Você não se meta comigo, Charlote – seu rosto encarnou enquanto ela caminhava furiosa na minha direção com os punhos fechados. Fernandinho a segurou – Se quiser posso te lembrar do passado agora mesmo, visse.
— Pois venha – encarei – faço questão de te mostrar que o passado está morto e enterrado e você não vai gostar nadinha de conhecer a mulher que me tornei.
— Pare já vocês duas – dona Carmem se meteu. Estava arretada – Se as coisas caminharem nesse rumo, não terei outra opção do que chamar outra pessoa para resolver esse problema, Charlote. Se acalme, mulher.
Fiquei envergonhada. Eu prometi que não responderia às provocações de Emília, falhei.
— Não carece, dona Carmem – falei – peço desculpas, mas quero ir até o final nesse problema.
Silenciamos. Emília não ousou perguntar novamente o porquê de estar ali. Ela sabia, mas jamais teria capacidade de assumir que falhou com a própria filha.
Então sentamos, eu de frente para ela. Encarei bem nos seus olhos e deixei que apenas o profissionalismo falasse ali.
— Morgana Silva, nova aluna do colégio arquipélago, tem um currículo enorme de confusões nas escolas anteriores em que passou e estamos aqui para tentar entender o que faz ela ter um comportamento tão agressivo.
— Avalie só! – Emília achou graça onde não tinha e caiu na gaitada – Vocês me fazem perder minha manhã para falar sobre coisas que eu já sei? Deixa de leseira, Charlote. Não há problema nenhum com Morgana, ela apenas tem uma personalidade forte.
— Que diacho! – Se meteu Fernandinho, irritado – Desde quando fazer piadas, perseguir e machucar colegas é personalidade? O que falta a Morgana é uma chapuletada bem-dada no pé da orelha para ela aprender a respeitar os outros.
— E quem vai ser o cabra corajoso que vai pôr as mãos na minha filha? – Ela se levantou – você? Quem é você, Fernandinho para dar lição de moral aqui? Quando éramos crianças fazíamos isso direto, lembra? Alguém morreu por isso?
— Mas foi por um triz – ele olhou para mim. Ela também.
— Nossas brincadeiras só fizeram bem a Charlote, ela até emagreceu. – Soltou outra gaitada.
Eu me segurei para não respondê-la como merecia.
— Não é assim que vamos resolver isso, Fernandinho – falei – nada de chapuletadas. – Me direcionei a Emília, novamente – Você precisa conversar com Morgana, e dizer a ela que brincadeiras assim estão proibidas no colégio arquipélago. Entendeu, Emília?
— Eu não direi nada – cruzou os braços, empinando o nariz – e não quero que vocês se metam com a minha filha. Se eu ficar sabendo que vocês foram dar lição de moral para Morgana vocês sentirão a fúria do cavalo do cão aqui.
Ela simplesmente virou as costas e foi embora.
— Infeliz da costa oca! – Esbravejou Fernandinho.
— Que nó-cego temos aqui, visse– Carmem parecia azuretada, tentando ainda entender o que levava Emília a agir daquela forma.
— Diacho! – Fernandinho parecia um derrotado ou, pelo menos, transparecia se sentir assim – mas nem tudo está perdido. Ainda temos Bernardo para conversar.
— Eu quero acreditar que sim – naquela hora levei um tapa na cara do desânimo – não custa muito tentar.
Então saímos do colégio. Caminhamos até a praça e esperamos Bernardo chegar. Tínhamos marcado um encontro com ele e eu já estava esgotada daquela conversa, com aquelas pessoas que eu não queria conversar. Eram dois irresponsáveis, soberbos e mesquinhos, disso eu já sabia. Só precisava descobrir o que mais eles estavam fazendo para contribuir para o comportamento agressivo de Morgana piorar cada vez mais.
3
Um bebum na área
Bernardo estava magro, com orelhas enormes e um bafo de pinga de lascar, visse. Chegou, sentou-se entre eu e Fernandinho no banco da praça, em silêncio.
— Andou bebendo de novo, cabra? – Fernandinho deu uma leve sacudida nele como se quisesse acordá-lo para vida – Tu não tá bicado, né?
— Oxente! – Eu quase desmaiei com o cheiro que saía da boca dele – me chamou aqui para me dar lição de moral, foi?
— Não ligue para Fernandinho – falei e o olhar que ele direcionou a mim foi de surpresa, como se tivesse me enxergado naquele exato momento – Vamos falar sobre Morgana?
— Olhe para você, Charlote! – Sorriu – onde foi parar toda aquela banha que você carregava?
Soltou uma gaitada. Eu respirei fundo para não desistir de vez daquela bronca em que eu insistia em resolver. O tempo não ajudou em nada aqueles dois, o caráter deles parecia pior do que antes.
— Não estamos aqui para falar da Charlote – Fernandinho o recriminou – O que anda acontecendo na sua casa para que o comportamento de Morgana seja tão agressivo?
Ele não respondeu à pergunta de imediato. Dava para perceber que ele pensava muito no que responderia.
— Quando Allan foi embora, eu vi a chance de conquistar Emília, já que sempre tive os pneus arriados por ela – ele começou lá do começo e eu senti que contar aquela história seria mais um desabafo – Começamos a chamegar e ela se entregou a mim. Que juízo podem ter dois meninos de 14 anos?
Ficamos em silêncio. Fernandinho não parecia muito interessado na conversa, mas eu estava avoada que só para descobrir onde aquela prosa iria nos levar.
— Emília engravidou e o pai dela ficou feito um pantel. Apontou uma espingarda na minha cara e me obrigou a casar com ela – ele riu como se fosse divertido se lembrar daquilo – eu gostei, mas Emília não. Quando Morgana nasceu a coisa piorou muito lá em casa. Ela não queria cuidar da menina. Dizia sentir ódio dela e eu tive que me virar. Mas não foi só Morgana que sentiu o desprezo de Emília durante todo esse tempo. Eu também senti.
— Sabendo quem era ela, não deveria nem ter pensado nessa possibilidade de chamegar com aquela metida a besta– minha boca grande disse.
— Oxente! – Olhou para mim arretado – O arquipélago inteiro sabia do seu chamego por Allan e veja só, ele foi embora te largando aí
— Ficou doido, cabra? – Me levantei avexada e eu sei que meu rosto encarnou de raiva – o que diacho uma coisa tem a ver com a outra?
— E eu vou lá saber! – Disse ele – Aliás, mesmo longe o Allan tem atrapalhado minha vida, visse. É difícil demais para mim ouvir minha Muié dizer que ainda é apaixonada por aquele cabra.
— A pois! – Fernandinho ria – Emília anda te botando gaia, é?
— Olha que se você repete uma coisa dessa esqueço que sou seu amigo e te arrebento as fuças, Fernandinho.
Então eu gritei com os dois ali mesmo ordenando que parasse já. Aquilo não estava funcionando.
— Por favor, Bernardo – pedi – continue me contando sobre como tem sido seu relacionamento com Emília e Morgana. Estou aqui apenas para ajudar.
Ele me observou por alguns segundos e seu semblante foi ficando sereno, outra vez. Voltamos a sentar e ele a soltar aquele bafo de onça para cima de mim.
— Quando Emília começou a jogar na minha cara que ainda arreava os pneus por Allan, inevitavelmente eu comecei a beber. Eu faltava ao trabalho, chegava tarde em casa e entreguei Morgana aos cuidados dela.
— E ela cuidava da Morgana?
— Ela largava a menina com os pais dela e quando Morgana estava em casa, Emília a agredia. Dava cada coça na coitadinha que eu ficava com dó, visse. E Morgana cresceu assim. No meio das minhas brigas com Emília. No meio das agressões e falta de amor dela.
— Fi duma égua – esbravejei – Que tipo de homem tu é, Bernardo que permitiu que aquela metida a besta fizesse isso com sua filha?
— Está com a moléstia, Charlote? – Arregalou os olhos para mim – Quer me ajudar ou me ofender?
— Tu é um cabra frouxo, isso sim.
— E tu é uma cabuloso, visse – gritou – por isso o Allan foi embora, não te aguentava.
— Só sabe usar o Allan como argumento?
Eu precisava me acalmar. Fernandinho chamou Bernardo no canto e conversaram por alguns minutos sobre aquilo, e tudo o que eu conseguia ouvir era cochichos. Eu tentava entender como foi difícil para Bernardo saber que a menina por quem ele era apaixonado amava um de seus amigos. Eu até tentei entender a frustração de Emília se vendo buchuda aos 14 anos, é obrigada a se casar com alguém que ela não amava. Era uma história triste, com um começo confuso e errado. Histórias assim não tinha como dar certo nem terminar bem. Portanto, nada disso justificava as agressões e o desprezo que aqueles dois tiveram por alguém que não tinha culpa de absolutamente nada. Se tinha uma vítima nessa história trágica, era Morgana, e eu faria de tudo para ajudá-la.
Me aproximei dos dois já decidida no que fazer.
— Avalie só! – Fui direta – Vou procurar o conselho tutelar e farei de tudo para tirar a guarda da Morgana de vocês dois.
— Infeliz da costa oca! – Bernardo veio com tudo para cima de mim. Fernandinho mais uma vez me salvou – você não se meta com minha família, visse.
— Eu lamento muito, Bernardo, mas não vejo outra saída.
— Deixa de leseira mulher – gritou comigo – eu amo minha filha e eu não vou deixar ninguém a tirar de mim.
— Não está sendo radical demais, Charlote? – Me perguntou Fernandinho – tirar a menina deles é absurdo.
— Absurdo é deixá-la continuar crescendo com esses dois malucos – disse, decidida – vou fazer o que precisa ser feito.
Ele começou a chorar. E eu me despedi. Fernandinho falou que ficaria ali com ele e que depois conversamos mais sobre isso.
— O que você precisa é de um macho, Charlote – Bernardo gritou que o arquipélago inteiro ouviu aquilo – vai chamegar e pare de se meter na vida dos outros.
Eu olhei para ele e rir porque não me restava outra coisa. Talvez restasse. Então em um gesto que eu jamais pensei que faria, mostrei o meu dedo do meio para ele, e fui embora sabendo que ele estava equivocado sobre aquilo. Se fosse para ter alguém como o próprio Bernardo ao lado, eu preferiria morrer sozinha.