Capítulo 11
1309palavras
2023-01-04 22:41
Foi em uma dessas “brincadeiras” sem nenhuma graça que Emília e sua turma me pegaram no corredor e me arrastaram para os fundos da escola. Mesmo sendo tão grande por causa do meu peso, lembro-me que o desespero foi a boléu que me fez perder as forças e aqueles rapazes magrelos conseguiram me levar até uma lixeira e me enfiar lá dentro de cabeça para baixo, visse. Eu chorava, estava arretada, em uma bronca enorme. A lixeira estava acochada e eu acabei ficando presa nela, sem ar. E depois disso não me lembro de mais nada e pela segunda vez fui parar no hospital. Quando acordei, minha mainha estava sentada ao meu lado com a cabeça baixa, um terço nas mãos. Com os olhos fechados ela orava, suplicava baixinho e chorava. Eu fiquei azoretada com aquilo. Horas depois o doutor me contou preocupado o que havia acontecido.
— Você sofreu uma parada cardíaca – Ele dizia e mainha chorava como se eu tivesse morrido – Ficou tempo demais dentro daquela lixeira. Perdeu os sentidos. Creio que lhe faltou ar, que se misturou com o desespero. Você quase morreu, viu, menina.
Mainha ouvia aquilo hora triste, outra hora com a gota serena e eu, ainda não entendia o que estava acontecendo. Dona Lúcia resmungava, com o rosto encarnado, dizendo que denunciaria a filha do diretor e todas as almas sebosas que participaram do crime. Ela perderia o emprego. Tentei convencê-la, em vão. Painho concordava com ela e não queria que eu me preocupasse com o resto. Acabei concordando, quando, enfim, entendi que a coisa realmente havia sido séria.

Depois de alguns dias internada, o doutor realizou diversos exames em mim. Preocupado, chamou painho e mainha e nos deu o Resultado:
— Avalie só. Charlote está com obesidade mórbida, o que na idade dela é muito grave.
— Que diabéisso de obesidade mórbida, doutor? – Perguntou painho, azuretado.
— Significa que ela está muito acima do peso – dizia ele – A gordura está tomando conta do coração. Charlote está com Hipertensão e colesterol alto.
Então houve um rebuliço dentro do quarto. Mainha chorava de um lado. Painho ficava nervoso do outro e eu sentia que se a gordura não acabasse de vez com o meu coração a tristeza certamente o faria.
— Não carece se avexar tanto Dona Lúcia – o doutor tentava acalmá-la – Charlote precisa cuidar da alimentação e praticar exercícios físicos.

— Oxê, mas só isso, para uma doença tão grave? – Falou painho.
— Simplificando um pouco mais – continuou o doutor – Charlote precisa perder peso.
O doutor continuou falando, tentando explicar para os meus pais da maneira mais simples o que eu precisava fazer para não morrer tão nova. Aquilo de perder peso seria de rosca. Fiquei suada só de pensar, visse. Eu andaria em uma corda bamba diante de um precipício, e uma pizza a mais que eu comesse a partir dali seria um baque direto para o fundo do poço. Eu sempre me incomodei com o meu peso e nunca escondi aquilo de ninguém. Nunca fui feliz com a minha aparência. A doença podia ser o empurrão que eu precisava para mudar. Centenas de milhares de pessoas viviam bem e felizes com o corpo que tinham e eu admirava isso, mas nunca foi o meu caso. Eu sempre acreditei que mais importante que uma boa aparência, era ter alguém saudável dentro de um corpo. Sem saúde nem felizes conseguiríamos ser. No meu caso faltava tudo: Saúde, boa aparência e felicidade. Pensar em morrer me apavorava, e quando o medo acochava o meu coração gorduroso eu tinha vontade de pular daquela cama, e sair correndo até não poder mais.
— Entendeu o que você precisa fazer Charlote? – Perguntou o Doutor.

— Sim – respondi, mesmo que eu não tivesse escutado quase nada do que ele havia falado.
— A pois! – Te passarei todas as recomendações médicas quando te der alta, e é muito importante que você siga sem pestanejar, visse?
Apenas balancei a cabeça confirmando e imaginando por onde começaria. Assim que o médico saiu, painho se transformou num pantel.
— Avalie só muié – pôs uma das mãos na cintura e a outra apontou com um dedo para mim. Eu sabia exatamente o que aquele gesto significava: Aviso, perigo à vista – Charlote anda comendo buchada de bode a boléu, como se o mundo se acabasse amanhã mesmo. E olha onde você veio parar sua menina com toda essa gula.
— Não fale assim, hômi – mainha ficou irritada – Charlote precisa do nosso apoio e não de carão.
— Está certo – ele concordou ou fingiu concordar – Mas que ela fique sabendo que emagrecer vai ser de rosca, visse!
Ele saiu do quarto e mainha foi atrás. Assim que saíram pela porta eu comecei a rir achando engraçado o modo como ele encarava as coisas. Meio segundo depois eu chorei. Me debrucei na cama e senti o meu coração desmantelar com o desespero e com a dor. Não seria nada fácil e às vezes eu duvidava da minha capacidade de mudar, e isso me fazia chorar ainda mais. Culpei o Allan por não estar ali, segurando minha mão. Eu não teria o seu apoio. Nenhuma palavra, nada. Depois de tanto tempo sem nenhuma mensagem, eu quase perdi as minhas esperanças. Não tinha nada mais triste para mim do que o desprezo de Alan. Eu precisava seguir sem ele, mesmo sabendo que de jeito maneira aquele amor um dia morreria.
Já em casa painho me proibiu de comer sarapatel, doces, refrigerante, até a feijoada o seu Chico encarnou de que me faria mal. A nutricionista que eu visitava no postinho, me passou a lista completa de refeições que eu, segundo ela, deveria seguir à risca. Era frescura demais para mim, visse, mas com o tempo eu me acostumei. Quando o sol começava a se esconder, bem de tardezinha, eu saia para caminhar pelo menos cinco quilômetros. Passei a frequentar academia, a única que tinha em Fernando de Noronha, e não demorou muito para os amigos de Allan ficarem sabendo e começarem com as piadinhas de mal gosto de sempre. Algumas semanas depois, o conselho regional de educação de Noronha obrigou o diretor da escola a expulsar Emília do Colégio, o que fez a infeliz da costa oca encarnar de vez em mim. Painho passou a me acompanhar na ida e na volta da escola todos os dias por causa das inúmeras ameaças que a Emília e sua turma vinha fazendo a mim. Dona Lúcia foi demitida da escola por causa da denúncia e rejeitou qualquer ajuda que o Conselho de educação oferecesse a ela. Dizia que não suportaria mais trabalhar com aquele cabra da peste, se referindo ao diretor. Já o Allan, nunca mais me procurou, nem respondeu minhas mensagens. Eu andava borocochô com o sumiço dele e isso causou em mim uma falta de apetite sem tamanho. As visualizações das mensagens no Facebook e o desprezo dele me ajudaram a perder alguns quilos. Perder peso era um motivo de alegria, mas eu não andava contente, meu coração se livrava da gordura, mas era consumido pela tristeza. Dois anos depois me formei no colegial decidindo assim não o procurar mais. Betânia me dizia que uma hora era preciso seguir em frente, deixar de leseira e voltar a viver. E foi o que eu fiz. Foram centenas de mensagens enviadas quase todos os dias, sem nem ao menos um sinal de Allan. Nenhuma consideração. Nenhuma demonstração de respeito. Depois de tudo o que vivemos; depois das juras de amor, ele se foi sem dizer adeus. Fiz meu curso de assistente social e um ano depois resolvi abrir uma ONG para ajudar jovens que sofriam com o Bullying. Era uma nova vida. Uma nova Charlote. Agora saudável, mas não completamente feliz.