Capítulo 10
1543palavras
2023-01-04 22:20
1
A vida que segue
Naquele dia chuvoso em que nos despedimos, e que eu o vi partir debaixo do olhar rigoroso de mainha, todas as manhãs foram iguais para mim. Aperreada com o tempo que não passava e a falta de notícias dele só me deixava mais mal ainda. As coisas aqui em casa só pioravam. Avalie só que durante algum tempo até acreditamos que Jacob havia tomado jeito, a pois que não, aquele alma-de-gato, mesmo cumprindo tudo que painho lhe mandava logo voltou a aprontar das suas. Era de dar dor a tristeza no rosto de mainha e aquela preocupação iminente em painho. Eu tinha vontade de dar umas boas chapuletadas naquele desajeitado do meu irmão para ele aprender ao menos não fazer sofrer as pessoas que mais amava ele, mas isso, de modo algum adiantaria.
Jacob se tornou um homenzarrão muito bonito, mas um infeliz da costa oca, que até foi preso, visse. Muitas vezes ouvi, painho dizer que já tinha desistido do seu filho mais moço, que já não sabia mais o que fazer com o seu mal comportamento. Não foi por falta de amor, nem de uma boa educação, as mesmas rédeas que eu e Bentinho tivemos, Jacob também teve. Talvez tenha sido pelas más influências, mas jamais teria sido por outro motivo qualquer.
Dez dias depois da partida de Allan, recebi uma carta sua. Mainha dizia que ele nem havia esperado esquentar o lugar na casa nova, pela ligeireza com que as notícias haviam chegado. Talvez ele estivesse tão ansioso quanto eu, talvez a saudades fosse maior do que tudo:
Vinte e seis de agosto de 2005
Querida Charlote
Procurei várias outras formas de me comunicar com você, mas mainha disse que a maneira mais romântica era escrever uma carta. Esses dias foram difíceis sem você. Essa cidade grande e movimentada me sufoca. Às vezes acho que estou em uma caixa lotada de gente esquisita comigo. Fico avexado só de imaginar, visse. Saudades de Noronha, dos boys e de você. Às vezes coisas como essa mudam nossa história com a força de um furacão, a gente não sabe por onde começar. É tudo novo para mim, estranho demais. Isso que sentimos não acaba em Noronha, mesmo que esteja bem longe de você, visse. Jamais se esqueça disso. A pois, quero te pedir uma coisa. Preciso que você vá a uma casa dessas onde tem computador e abra uma conta no MSN. Vai ficar bem mais fácil da gente se comunicar. Cartas demoram a chegar e às vezes não dá para pôr nela tudo o que a gente sente. Eu não consigo completar uma ligação para você do meu celular. Depois que tudo estiver feito me adicione naquele e-mail que deixei anotado no seu caderno de escola, mas não demore, porque assim eu posso te sentir mais perto de mim.
Um grande beijo do boy que te ama muito.
Allan Gesser.
Lágrimas inundaram meus olhos. Como eu sou abilolada meu Deus, chorei tanto que as gotas molharam o papel, borrando as letras. Oxê, que menina lesada, visse. Lembro que quase estraguei a única lembrança boa que podia ter de Allan. Quase me matei por isso, mas acho que alguém também quase morreu naquele dia, quando eu adentrei a cozinha aperreada que só para que mainha, me desse um trocado para eu ir logo onde Allan pediu.
— Que diacho é isso menina? – Ela pôs uma das mãos no coração como se quisesse segurá-lo para não fugir correndo. Me olhava com os olhos arregalados e eu não conseguia não rir – A pois, menina, onde foi que tu viste graça hein?
— Desculpa mainha – segurei o riso – preciso de dinheiro para ir na lan house, visse.
— Oxê, mas que diabéisso de lan house, Charlote?
Eu rir de novo.
— Aquela casa onde tem um monte de computador – eu disse – preciso acessar na internet para falar com Allan.
Ela me olhou, analisou por longos segundos, depois se afastou até o seu quarto e voltou de lá com o dinheiro.
— Avalie só! – Ela apontou o dedo para mim, e eu sabia bem o que aquilo significava – Não quero você enfiada naquele lugar de dia e de noite, visse. Fale para o Allan arrumar outra maneira de vocês conversarem, esse negócio de computador não é certo não.
Mainha sempre teve esse jeito protetor dela. A tecnologia muitas vezes assustava Dona Lúcia. Ela nunca achou certo o tempo em que eu perdia – segundo ela – na frente do computador. Tinha que ver a cara dela quando eu comprei um computador pela primeira vez lá para casa.
Me recordo perfeitamente que apanhei muito daquele computador, mas depois de muitas voltas, enfim, fiz a minha conta e já fui logo falando:
Allan (Offline)
Charlote diz:
Oi Allan, estou odiando essa distância, visse. Sabe que dia você vai vir aqui nos visitar? Não demore muito a responder, eu mal comecei a mexer nesse negócio e mainha já está na bronca comigo.
Charlote (Offline)
Allan diz:
Também estou, mas não se avexe. Vai demorar bastante para a gente ir por aí. Também estou com saudades, mas painho nem fala nessa possibilidade de visitar Noronha, não por enquanto. Agora preciso ir.
Allan (Offline)
Charlote diz:
A pois, diga para ele que se demorar muito eu mesma vou aí ver você, não sei como, mas eu vou.
Charlote (Offline)
Allan diz:
Tenha calma boyzinha, senão você me deixa arretado. E como estão as coisas em Noronha? Dona Lúcia, seu Chico? E Jacob já tomou jeito? E o colégio? Me conte, vai.
Allan (Offline)
Charlote diz:
Em Noronha quase tudo continua o mesmo. Já faz dois meses que você se foi e já parece uma eternidade, visse. Eu tive que começar a ajudar mainha nas confecções de roupa para ganhar um trocado todo o final de dia para poder vir na lan house. Painho está bem, mesmo com as broncas que Jacob continua a dar. No Colégio, além do buraco que você deixou, a Emília está de Chamego com o Bernardo, pelo menos assim ela parou mais de infernizar minha vida. Os boys sentem sua falta, visse. Sempre perguntam por você. E por aí como andam as coisas?
Charlote (offline)
Allan diz:
A Emília de Chamego com o Bernardo é? A pois, aqueles dois se merecem mesmo, visse. Por aqui está tudo bem, mas semana que vem eu começo um novo curso, então não vou poder entrar todos os dias por aqui, visse. Mas não se preocupe. Assim que dê a gente se fala. Mande um beijo para Dona Lúcia, e um abraço bem forte em Seu Chico. Diga que mandei lembranças. E para você um grande beijo. Te amo boyzinha.
2
As brincadeiras que me feriram
Com o tempo nossas conversas foram ficando menos frequentes. Allan sempre me dizia que estava estudando demais e que a correria do dia não o deixava ter um tempo para nós. Meu coração se avexava com isso, mas eu também ganhei minhas responsabilidades.
Alguns meses depois da partida de Allan, quando eu ainda sofria calada, Emília e sua turma voltaram a me atormentar. Foi no intervalo, quando eu estava sozinha sentada no banco perto do corredor, apenas observando o movimento dos boyzinhos e buscando qualquer coisa capaz de me fazer parar de enxergar a presença de Allan em tudo o que via. Quando avistei os infelizes da costa oca, dei logo um jeito de amarrar o meu jegue e fugir, mas não deu tempo. Eles se amontoaram ao meu redor, Emília e mais umas dez outras meninas e foi risos para todos os lados. A piada era eu! Como se já não bastasse os xingamentos, vieram também os empurrões de um lado para outro. Eu até parecia uma bola de gude sendo jogada de mão em mão, até perder o rumo e cair feito uma banana podre no chão. É claro que os risos aumentaram junto com a vergonha e a dor que se apossaram de mim. Ainda bem que Allan não estava ali para ver tamanha humilhação. Na brincadeira de mal gosto bati minha cabeça no banco de concreto, fazendo um corte fundo bem no meio da minha testa. Naquele dia fui parar no hospital. Levei três pontos e uma cara inchada, visse. Me tranquei no quarto e chorei. Mainha não perdeu tempo e foi logo azuretar no ouvido do diretor sobre a filha malcriada que ele tinha. O hômi foi capaz de deixar dona Lúcia com a gota serena quando afirmou sem medo, que aquele incidente foi apenas brincadeira de criança.
“Porque não foi com a sua filha, seu cabra” ela disse e quase perdeu o emprego por isso.
Já em casa, tentando me consolar com um abraço acochado, ela disse que tomaria uma providência qualquer, mas não deixaria aquela cambada encarnar mais uma vez comigo. Foi bem nessa época que eu ouvi pela primeira vez a palavra bullying, um termo bonito para descrever algo tão feio. Era exatamente isso que eu vinha sofrendo a anos, calada. Atos de violência física e psicológica por causa do meu peso. No fundo, mainha desejou que a escola tomasse suas providências, mas nada foi feito, e as chacotas continuaram, contra mim, contra outros colegas.