Capítulo 8
1740palavras
2023-01-04 22:14
1
A grande árvore florida
Eu não entendo até agora o motivo que tenha me feito beijar a Charlote. Será que ela era o grande amor da minha vida? Será que era por este motivo então que eu estaria tão triste e agoniado daquele jeito por saber que ficaria longe daquelas gordurinhas? Eu não conseguia explicar nada com nada para mim e, saindo contente de lá, acabei me deparando com Emília e Bernardo pelo caminho. Não foi uma cena nada comum. Estranhei! Bernardo não era de convívio com Emília e além do mais, sim, eu senti um ciúme arretado quando os vi quase que encochados na viradinha do bar de dona Gonzaga. Era lá… era lá que eu já tinha presenciado algumas vezes, alguns casais brigarem ou se amarem. Os amores eram mais fáceis. Mateus dizia que ali era um dos melhores cantos para se pegar as boyzinhas porque além de escondido dos olhos dos abelhudos era um lugar bem romântico.

A grande árvore florida era o que mais chamava a atenção. As flores, belas e delicadas, enfeitavam o chão comprido e estreito da viradinha. Um banco de madeira com espaço para dois e um horizonte quase que de frente para uma parte da praia de Noronha deixavam o lugar, lindo pra burro. Eu esqueci de falar das milhares de pedrinhas bem miúdas em coloração clara, um rosado quase no branco, que ao findar as tardes, ao início do escurecer, brilhavam quando o brilho da lua tocava suas superfícies inigualáveis. É, naquele momento eu sabia que aquela era uma das imagens que eu levaria comigo para onde quer que eu fosse. A minha cidade era linda de doer e nela haviam lindas pessoas que, mesmo barraqueiras, gordas, esnobes ou não, faziam parte da minha evolução.
— Desencoste, veio! — Não tenho certeza se foi a minha entonação que assustou o Bernardo. Comecei a pensar coisas
— Allan? Mas, o que fazes aqui? — Respondeu Bernardo.
— Eu que pergunto. O que fazes aqui? E, além do mais, com a Emília. O que está acontecendo?
— Nada. Só estávamos resolvendo umas coisinhas, não é Bê? — Emília interveio.
Ela não parecia assustada, ao contrário dele. Levantou-se sem se avexar com a minha chegada. Cochichou alguma coisa no ouvido do Bernardo como se um segredo entre eles existisse, mas como se não fizessem questão alguma de esconder a existência do tal segredo. Não que fossem me contar, mas se eu perguntasse sobre um segredo entre os dois, eles diriam que sim, que havia. Aliás, eles não. Ela. Ela diria. Emília era assim, não tinha papas na língua, adorava ser patricinha daquele jeito e não se importou com isso desde a época em que éramos crianças.

Eu conhecia muito bem todos eles. Mesmo que não soubessem de nada, eu sabia de todas as características deles. Deles? É a cara do povo, da galera, da turminha que cresceu arengando um ao outro na beira de Noronha e que fez da praia, dos seis aos dez, as suas segundas casas. Só depois dessa idade que a gente passou a entender que a praia não era tudo em Noronha. Aí começamos a nos conhecer melhor. A olhar melhor dentro dos olhos de cada um. Principalmente os meninos. Nós fitávamos as boyzinhas direto. Era mais ou menos assim: Mateus arengava com Betânia, que queria Fernandinho, que gostava de Charlote, que tinha uma paixonite por Allan, que só olhava pra Emília, que já tinha se declarado para o Bernardo duas ou três vezes. Claro que isso foi mudando com um tempo, quer dizer, nem tudo isso, mas algumas coisinhas sim. O que eu nunca consegui entender é que Bernardo jamais demonstrava algum sentimento por nenhuma das meninas. Beleza, ele era tímido e uma porção de coisas que sempre respondeu para a gente quando passamos a questioná-lo sobre isso, mas, sinceramente, eu não engolia aqueles bandos de desculpas não. Eita mizinga! Quem sabe até eu entendia, mas, no fundo, preferia esconder de mim mesmo. A sociedade sempre foi hipócrita e nós não podemos mudar uma coisa, somos parte dessa sociedade que impõe limites, condutas e um monte de coisas absurdas que excluem determinadas pessoas do meio social. É, agora eu tenho certeza de que realmente eu sabia o porquê de o Bernardinho ser daquele jeito, mas como sempre, seguia os padrões medíocres.
— Tchau Allan, dê lembranças minhas a gorda — esnobou Emília, enquanto passava por mim com o celular posto ao ouvido.
— Onde você vai? Volte aqui Emília. Não quer que eu te leve?
— Não, claro que não — respondeu olhando para trás. — Se liga garoto, hoje eu estou em outra, visse? — Virou-se novamente e seguiu.

Bernardinho, que logo se levantou limpando a calça e a parte da frente da camisa, passou por mim sem comentar o que estava acontecendo. Olhos úmidos, cabeça curvada para baixo e uma expressão de tristeza. Deu um tchau com voz rouca e fraca e sumiu na curva oposta à de Emília. Restou a mim, o velho banquinho solitário que solitário ficou. Fui para casa naquela tarde com os pensamentos em Charlote, Emília e Bernardo.
2
As confusões de Jacob
Fiquei com a imagem do nosso beijo na mente até chegar em casa. Me questionei o porquê do silêncio do Allan depois daquilo… você sabe, meu Deus, nem acredito que ele me beijou, diacho. Cheguei em casa sorridente, meio abestalhada, quando encontrei mainha, painho e Jacob em uma discussão sem fim.
—Tu está me saindo um belo de um alma-de-gato, visse seu menino – seu Chico berrava dentro de casa – Esses anos todos me dedicando a vocês e é assim que me agradece?
— Calma, hômi – mainha dizia, tentando segurar o braço dele que já se preparava para arrancar o cinto da calça e dar um belo de um coro no treloso do, Jacob.
Eu me assustei, porque fazia muito tempo que eu não via, painho tão bravo assim, ainda mais pronto, depois de tanto tempo, para dar uma coça em um de nós. Quando éramos menores, sabíamos que aquele cinto seria o nosso destino caso um de nós nos metéssemos em encrenca. Foi assim que dona Lúcia e seu Chico nos criaram. Mas aí a gente foi crescendo, e as coças tornaram-se castigos longos e arretados de ruins. Depois de grandes, nem mesmo mainha, pegava mais as suas alpercatas para bater em um de nós, não até hoje.
— Não precisa se avexar assim hômi – painho já estava com o cinto na mão, caminhando que nem um pantel para cima de Jacob, que andava e cagava para ele.
— Avalie só, muiê – ele dizia – esse cabra parece que nem percebe a bronca que ele se meteu, e tu ainda defende?
Eu nem ousei me meter, mesmo que tivesse uma vontade arretada de segurar Jacob só para painho bater nele. Aquele treloso merecia. Alguma coisa ele tinha aprontado.
— Foi a primeira vez que eu matei aula, painho – ele dizia, despreocupado – vai me bater só por causa disso?
— Não responda seu pai, diacho – Mainha dizia.
— Primeira vez, Jacob? – Painho batia o cinto com força na mesa da cozinha – tu achas que eu nasci ontem cabra? Tu achas que eu vou te dar uma coça daquelas só por causa disso? E as bolachas que você roubou no mercadinho do seu Zé? Vou contar todas as bolachas que tem naqueles pacotes, e cada uma vai ser uma chapuletada que vou dar no pé do seu ouvido. Vai ficar encarnado para aprender a não matar mais aula para roubar. Não coloquei filho no mundo para ser marreteiro, diacho.
Painho correu para cima dele, mas Jacob foi mais rápido, saindo na toda sem dar chance para seu Chico alcançá-lo. Ele entrou em casa sentido, nem bravo, nem cansado, mas pesaroso com a situação. Dava até dó de vê-lo assim.
— Que cu de boi aquele menino nos meteu, muié – A voz baixa, o rosto abatido – mas ele vai se ver comigo e aí de quem se meter nisso, visse?
Talvez mainha achasse que fosse tarde demais para ajeitar as coisas lá em casa. Painho, se levantou e saiu, e ela, ficou lá, sentada no sofá de cabeça baixa, chorando, resmungando baixinho alguma coisa que não deu para escutar. Caminhei até ela e lhe dei um abraço bem acochado. Depois de alguns minutos, ela enxugou as lágrimas e também saiu.
Éramos três irmãos, que nascemos em uma casa bem humilde em Fernando de Noronha. Fomos criados com muita rédea, muito amor. Painho sempre foi esse pantel, gostava de manter tudo sob seu controle. Trabalhava na agência de turismo da cidade e isso às vezes roubava grande parte do seu tempo, mas ele sempre se dedicou cem por cento à nossa família. Mesmo durão, era um ótimo contador de histórias, um ótimo pai e um excelente marido. Para ele era uma barra ver toda a sua dedicação e amor indo por ralo abaixo. Ver Jacob no caminho errado era tudo de pior que ele podia imaginar um dia. Jacob já vinha aprontando as suas já fazia muito tempo. Não era a primeira queixa que painho tinha dele, ele colecionava centenas dela; Matar aula, roubar, até em briga Jacob já havia se metido. Uma tristeza só para o coração de mainha, que tentou de tudo ajudá-lo, protegê-lo, mas fracassou. É triste dizer isso, mas ele estava virando um mala, visse, e eu nem sei se era tarde demais para recuperá-lo.
Durante a madrugada ele chegou e foi uma zoeira só dentro de casa.
— A pois, amanhã você começa a trabalhar comigo lá na agência – painho dizia – vai chegar da escola e vai trabalhar, visse? Assim não tem tempo de arrumar bronca por aí.
Jacob não dizia nada.
— E não me apronte mais nenhuma dessas, seu menino. Da próxima vez o castigo vai ser outro e tu não vai gostar nadinha, visse.
E a noite silenciou novamente. No meio de toda essa confusão eu nem tive tempo de pensar no Allan ou me preocupar com a sua partida. As coisas aqui em casa me deixavam avexada que só. Mas eu sonhei com ele essa noite, os seus olhos pregados nos meus, me fizeram esquecer por alguns instantes os problemas. A sua boca na minha me fizeram lembrar que não era só no sonho, mas que foi real. Real demais.