Capítulo 4
2214palavras
2022-12-30 02:41
Cristina acabou perdendo a primeira aula de James.
Já era março, e ela aguardara o início das aulas com ansiedade, o que não era de jeito nenhum típico dela. Enquanto esperava, se encontrada com Maurício ocasionalmente, apreciava seu cunhado ocasionalmente, irritava Olga ocasionalmente quando se encontravam.
Tudo ocasionalmente, porque, na maior parte do tempo, Cristina só conseguia pensar em uma pessoa.
Mas acabou acontecendo que, logo no primeiro dia na faculdade, Cristina se entusiasmou demais com os garotos de Ciências Sociais e acabou esquecendo totalmente de caçar o professor James. Perdendo sua primeira aula como consequência.
Tudo bem. A maior parte do dia tinha sido trote, mesmo.
Então, na segunda aula, lá estava ela, aproveitando-se do fato de que a turma não se conhecia bem o suficiente ainda para identificar uma intrusa.
E ele chegou.
Nem reparou nela no início. Melhor. Cristina era uma perseguidora discreta, embora tivesse dado em cima dele ostensivamente quando estava no colégio. Na faculdade, porém, era diferente. Principalmente porque, como ela se lembrava sempre, ele era só um professor substituto. No caso, o verdadeiro professor quebrara o quadril e ficaria ausente pelo resto do período, talvez do ano. O que era bom, muito bom. Fora da sala de aula, ela não sabia muito bem como encontrá-lo.
De qualquer forma, ela precisava agir rápido. Depois que a aula finalmente acabou – Cristina, sentada num local discreto jogando Snake, nem ouvira o que ele falara sobre a revolução dos costumes ou qualquer coisa assim -, ela foi atrás dele.
- Olá – disse ela com o maior charme que conseguiu, tentando sobrepor a voz na balbúrdia que era um fim de aula.
Ele a olhou como se não a conhecesse. Isso a machucou.
- Cristina Medeiros, lembra? A do Colégio das Irmãs.
Ele a examinou de cima a baixo. Depois a encarou bem. E Cristina soube que, independente do que ele falasse, ele se lembrava bem.
- Na verdade – começou ele lentamente – não.
E essa mentira a irritou. Ela costumava ler as pessoas bem. Pelo menos os homens.
- Tem certeza que não? Sou uma pessoa mar...
- Não – interrompeu ele – Não lembro.
E agarrou a bolsa e foi indo para a porta. Cristina ficou estática pelo fracasso. Por algum motivo ele estava fingindo que não a conhecia. E se ele persistisse naquilo, arruinaria todos os seus planos.
-
Por baixo da superfície de calma budista, Olga Rachmaninoff era mesmo muito geniosa. E cabeça-quente.
Na verdade, uma parte de Cristina já tinha certeza daquilo depois da amostra de kung fu. Agora ela tinha certeza. Ninguém pode parecer um mestre budista num dia e quebrar as coisas do namorado no outro sem ser meio desequilibrada.
Olga saiu pisando forte do quarto. Depois de olhar atravessado para Cristina, foi embora da cobertura batendo a porta com tanta força que estremeceu o local.
No segundo seguinte, Miguel chegou. Maurício voltou a passear pelos canais da televisão.
- Ela já foi – comunicou Cristina.
- Eu ouvi – respondeu ele, mal-humorado, respirando forte.
- Pelo visto ela descobriu a gaveta – observou Maurício.
Essa era a hora que Cristina se virava curiosa para Maurício e perguntava:
- Que gaveta?
Como se não soubesse.
- A gaveta de calcinhas do Miguel – esclareceu Maurício.
Como se já não tivesse contado.
E como se Cristina, quando soube que Olga estava vindo, não tivesse ido lá e escancarado a gaveta. E, como definitivamente Teresa já passara da idade de usar calcinhas tão pequeninas, e como não existiam garotas na casa, Miguel estaria em problemas quando sua namorada visse tal coleção.
- Uou, Miguel. Não sabia que você gostava dessas coisas.
Ele corou um pouquinho.
- Não gosto. É diferente, Cristina.
- Diferente como?
Miguel hesitou como se a questão fosse muito delicada e meio vergonhosa até mesmo para ele. Foi Maurício que acabou resolvendo.
- São souvenirs.
Cristina olhou Miguel de cima a baixo.
- De todas as suas garotas? – questionou para checar, ainda em dúvida.
- De todas as garotas que eu consegui – confirmou Miguel, o orgulho saindo à superfície – É assim que mantenho a minha contagem.
Foi quando Cristina ficou definitivamente decepcionada. Miguel podia pagar de rebelde, vestir preto e estourar os tímpanos alheios colocando a música no último volume, mas, no fundo, continuava no sistema; queria continuar sendo um porco machista como seus ancestrais, contando cada mulher que já pegara como se fosse um troféu. Ela ficava indignada com essas coisas.
Mesmo assim, a contragosto estava impressionada. Eram muitas calcinhas. De encher as duas mãos e ainda sobrar. Pior, ela própria era uma candidata a ceder uma.
- A dela estava lá? – perguntou ela só por perguntar, porque já sabia a resposta. A reação dela tinha dito.
Miguel olhou bem para ela, meio arrogante.
- Claro que sim.
- Então você devia ir atrás dela – opinou Maurício, num raríssimo momento de falta de hostilidade.
Miguel concordou com a cabeça. Ambos não queriam discutir. Coisa rara de acontecer. No momento seguinte, ele estava fora da cobertura.
Agora Cristina e Maurício estavam sozinhos.
- Foi você, não foi?
Quando ela o encarou, viu que não adiantava negar.
- Foi.
- É bom saber como você é antes do nosso casamento – disse ele sem nenhuma censura na voz.
O coração dela deu pulos.
- Casamento?
- Sim.
Ele desligou a televisão e virou-se para ela. Um pedido de casamento agora? Depois que Cristina sacaneou abertamente seu irmão?
Talvez exatamente por causa daquilo.
- Cristina, eu te amo – declarou ele com uma sinceridade absurda para alguém daquela idade - Se eu ainda não estivesse no segundo período da faculdade, eu casaria. Você é perfeita para mim.
Cristina quase derreteu. Naqueles momentos, parecia valer a pena ser uma romântica melosa. Que pena que a vida real não era daquele jeito. Maurício era um dos últimos que acreditava no amor feito de açúcar.
-
Algumas semanas depois, movido por espírito ecológico, Maurício resolveu levá-la ao Jardim Botânico, mostrando que não a conhecia mesmo, porque iria levá-la a um lugar a) Que tinha que andar muito e b) com muito verde. Cristina gostava era da selva de concreto. De preferência, com um lugar estratégico para sentar.
Mas tudo bem. Iria deixá-lo ficar com suas ilusões, se elas continuassem a movê-lo em direção ao casamento.
- Você me decepcionou, Miguel.
O ser jogado no sofá se virou todo para encará-la. Estavam sozinhos na sala.
- Olha a minha cara de preocupação com isso.
- Estou falando sério.
Ele desistiu de ficar jogado no sofá e acabou sentando para encará-la melhor.
- Ah, é? Por que isso?
- Porque você, que tem a maior cara de desafiador do sistema e tal, pensa exatamente como qualquer homem normal.
- Penso?
- Claro. Colecionando mulheres.
- Você ainda está pensando nas calcinhas?
- Sim. Me decepcionei muito. Pensei que você fosse diferente.
Miguel ia falar algo, mas parou e a encarou de forma esquisita.
- Sabia que você falou igualzinha a Olga?
O sangue subiu ao rosto de Cristina.
- Ela não deixa de estar certa – disse ela com dificuldade – Você parece um cara tão contestador.
- Se deixa você feliz, ela me obrigou a jogar fora.
- E depois você foi lá e pegou de volta, não?
Ele riu.
- Se eu tivesse feito isso, você contaria para ela?
- Não, mas...
- Não é minha culpa como vocês me julgaram, de qualquer forma.
Cristina não disse nada, porque era verdade.
- Agora – disse ele em voz mais baixa, mudando de sofá para ficar mais perto dela, que já começou a pensar besteirinha – você quer saber uma pessoa que tenho certeza que você julga errado?
- Quem? – perguntou ela, muito mais interessada na proximidade dele do que na conversa.
- O Maurício.
Cristina começou a prestar mais atenção.
- Aposto que você o acha um cara super calmo e bonzinho. Enfim, um babaca.
- Não é? – perguntou ela com cuidado, controlando um risinho.
- Na maior parte do tempo. Está vendo essa cicatriz?
Era a mesma cicatriz que Cristina vira no dia do aniversário dele. Ele afastou o cabelo para que ela olhasse melhor e visse que o negócio continuava pelo couro cabeludo adentro.
- Você sabia que uma das poucas coisas que eu e meu irmão compartilhamos é que nós dois gostamos de armas.
Ela assentiu. Já ouvira falar daquilo, tratando-o mentalmente como uma espécie de curiosidade familiar.
- Só que eu gosto de armas mais modernas. Tipo pistola.
- Você tem uma arma?
Ele piscou para ela.
- Não vou responder nada que me comprometa. Mas isso não importa. O negócio é que Maurício gosta mais de armas medievais.
Cristina teve um vislumbre do que ele estava falando.
- É aqui que esse gosto encontra o outro que nós temos em comum.
- Qual?
- Garotas. As namoradas dele eram sempre tão bonitas e ele tão... blergh. Mal apagava o fogo delas! Acabava sendo inevitável eu terminar de cuidar da questão para ele – fez uma pausa e piscou para ela – Se você me entende.
Cristina entendia. Maurício era bonitinho. Miguel era gostoso. Era fácil compreender como as namoradas do primeiro haviam acabado na cama do segundo.
- Bem, eu não transei com você – observou ela, capciosa, ajeitando o corpo e se aproximando uns centímetros dele.
- Ah, é uma questão de tempo. Ninguém escapa de um hábito tão forte.
Foi quando Cristina se sentiu fortemente inclinada a beijá-lo. Maurício estava lá dentro. Só havia os três no apartamento. Quem ia saber se eles se aproveitassem um pouquinho mutuamente?
Então, a parte racional de Cristina interviu, enviando um pensamento para impedi-la daquele ato temerário. Ela se imaginou segurando um pássaro.
- De qualquer forma, o que aconteceu? – perguntou ela ao mesmo tempo em que colocava uma boa distância dos dois.
Miguel pareceu um pouco decepcionado.
- Ele conseguiu uma espada medieval e...
- Espera aí. Uma espada medieval?
- Bem parecida, pelo menos. Quando ele descobriu que eu estava transando com a última namorada dele, pegou o negócio e me deu umas porradas. Abriu minha cabeça. Minha mãe teve que trocar o tapete, já que a mancha de sangue não saía.
Cristina ficou horrorizada imaginando a cena. E ela que achava Maurício tão pacífico.
Lá dentro uma porta bateu. Miguel voltou ao seu sofá de origem.
- Também é por isso que ele não pode nem pensar que você tá louca por mim. Os pontos já foram dolorosos o suficiente da última vez. Teremos que ser discretos.
Cristina não teve tempo de falar nada, porque Maurício chegou.
- Podemos ir? – perguntou ele.
Inacreditável. Ele parecia incapaz de machucar alguém. E tinha aquela besteira de romantismo. Mas Cristina vira a cicatriz. Se Miguel não estava mentindo sobre sua origem – e ela achava que não – ele realmente tinha saído machucado. E toda aquela inimizade fraternal ficava explicada.
- Vamos, claro – respondeu ela.
Ele pegou na mão dela e a ajudou a se levantar. Um cavalheiro.
Mas ela estava muito mais atraída pelo irmão machista e metido a rebelde.
Cristina tentou se controlar para não perguntar nada, mas não conseguiu.
- Maurício, é verdade que você e o Miguel...
- Sabia que ele tinha contado.
Os dois pararam de andar. Graças a Deus. Cristina não sabia que o Jardim Botânico era tão grande, e preferia continuar não sabendo, se dependesse só dela.
- É incrível – começou ele, quase rilhando os dentes de irritação – que mesmo quando aquele maldito não está aqui, quando conseguimos ficar sozinhos, ele encontra uma forma de se meter. E sim, é tudo verdade.
- Você abriu a cabeça dele?
Maurício deu de ombros.
- Foi pouco. Sinceramente, Cristina, você sabe que ele mereceu. Mas foi bom você ter falado nisso para eu esclarecer algumas coisas.
Cristina sentiu um arrepio de medo.
- Você sabe que eu amo você, Cristina. Se nos separarmos um dia e você tiver outro, não vou perseguir você como alguns caras fazem. Mas sou muito sensível à traição.
Cristina entreviu o que estava chegando.
- Então, se um dia você me trair e eu descobrir, eu não vou aguentar. Vou acertar contas com o sujeito, e não vai ser bom para ele. E se for o meu irmão...
Cristina tentou engolir em seco de forma discreta.
-... vou matar vocês dois. Devia ter feito isso da primeira vez.
Fez-se silêncio, e Cristina se perguntou se ele sabia que Miguel já tinha passado o rodo em todas as namoradas que ele já tivera. Pelo visto não. Só sabia da última. Maurício pegou na mão dela e eles voltaram a andar, ainda calados.
Ela pensou se ele sabia o que estava acontecendo. Provavelmente tinha uma ideia do que o irmão fazia com as garotas. Ou costumava fazer, já que aquela ameaça explícita era um potente antídoto para qualquer atração que ela pudesse ter.
Cristina sabia que era uma vaca, mas não queria ninguém morto. Principalmente ela.
Mas, pensando bem...
Se um dia você me trair e eu descobrir, a frase era bem clara. Se ele soubesse. Se não tivesse ideia de nada, tudo bem.
E Cristina era boa de manter segredos. E ser discreta.