Capítulo 110
2360palavras
2023-02-06 11:45
- Como vocês já ficaram a par do que realmente aconteceu... – olhei no relógio – Podem se retirar da minha casa, por favor.
Os dois me olharam, surpresos enquanto eu me dirigia à porta.
- Mas... Viemos de longe. Onde vamos ficar? Não podemos voltar a esta hora. – Breno reclamou.

- Isso não é da minha conta. A casa era de Salma, agora não é mais. Como vocês mesmo disseram, ela “bateu as botas”... “Descansou a periquita”. – Repeti as frases ridículas deles.
- Que porra, achei que ficaríamos ricos. – Breno falou num tom de voz alterado, batendo o pé no chão.
- Com o dinheiro que Salma poderia ter economizado? – eu ri, sarcasticamente – Ela era uma simples dançarina de boate. Ninguém enriquece desta forma.
- Mas já li sobre garotas de programa que ficaram ricas, com clientes importantes, como juízes, CEO’s, políticos. – Anya disse.
- A questão aqui é que Salma não era garota de programa. E nem tem como vocês saberem, porque não participavam da vida dela – abri a porta – Amanhã eu vou levantar cedo, porque tenho compromisso e deixarei Maria com os avós paternos... – tentei encontrar argumentos que pudessem deixar minha mentira crível.
Os dois levantaram, contrariados.

- Quero os pertences de Salma. – Anya disse.
Sério isso? Ela achava que tinha direito sobre as coisas de Salma, mesmo não tendo procurado a filha por mais de uma década? E ainda trazia junto o seu companheiro, o homem que abusou de sua própria filha e ela fez vistas grossas, fingindo que nada acontecia.
Que gente sórdida! Pena de você, minha amiga! Pelo visto não foi só eu que vivi a porra de uma vida. Não tenho certeza se a sua não foi pior.
Ok, nós daríamos para uma instituição de caridade. Então, que fosse para a vagabunda da mãe dela.

Fui rapidamente até o quarto, que já estava um pouco mais organizado e peguei duas sacolas com roupas e calçados, tentando não demorar, receosa que pudessem me roubar qualquer coisa de dentro do apartamento.
Entreguei a ela as sacolas e despedi-me:
- Boa noite.
Os dois saíram. Antes que eu fechasse a porta, ouvi Breno perguntar para Anya:
- O que vamos fazer com estas porras?
- Vender.
Fiquei escorada na porta, já fechada, sentindo meu coração saltar pela boca. Não tinha certeza se havia sido convincente, mas tive que improvisar. Entregar Maria Lua a eles jamais. Nem que eu tivesse que fugir com ela.
Ouvi batidas na porta novamente. Não tive dúvidas de que eram eles, pois tinha uma campainha ao lado da porta. E até hoje foram os únicos que usaram a mão para anunciar que estavam do lado de fora.
Me peguei pensando como entraram sem me chamar pelo interfone do lado de fora do prédio. Certamente aproveitaram a passagem de algum morador e subiram. Mas... Sabiam como número do meu apartamento, sendo que nunca vieram ver Salma. Quem lhes falou tudo que sabiam?
Abri a porta, sentindo o rosto queimar:
- Esqueceram algo?
- Onde está a moto que o pai deixou para ela?
- Está de brincadeira? – Perguntei aturdida.
- Por que estaria? Quer roubar a moto da minha filha, que por direito agora é minha, pois ela morreu? – Anya indagou.
- Salma jogou fora aquela lata velha.
- Como assim jogou fora?
- Doou. – Sorri nervosa, tentando acabar de vez com a conversa.
- Mas... Não pensou em doar para família? – Breno perguntou, pensativo.
- Família? – Enruguei a testa, incerta se ele estava sendo irônico.
Como ele seguiu me encarando, percebi que não era ironia. Realmente ele achava que era a família de Salma e se achavam no direito de ficar com a lata velha da moto que o pai lhe deixou de herança, a qual eu mesma havia deixado num lugar qualquer em Noriah Norte, a pedido dela.
- Ela doou a moto, porque não quis – expliquei – Boa noite.
Não me contive. Fechei a porta com eles ainda ali.
Minha mente dava voltas e voltas e eu não conseguia raciocinar direito. Senti enjoo da forma como eles falavam, nojo de como se vestiam e gesticulavam e por terem tocado os pés na minha casa.
Peguei um pano, encharquei com produto para limpeza pesada e comecei a passar pelo sofá, com força, machucando minhas mãos, tentando tirar qualquer vestígio deles de dentro do meu lar.
Depois de mais de quinze minutos fazendo aquilo repetidamente, sentei no chão, exausta, ao lado do sofá, sentindo cansaço e lágrimas escorrendo pelo meu rosto:
- Eu não vou deixá-los tocarem na minha filha. – Minha voz saiu tão baixa que nem tive certeza se emiti som.
Ouvi o choro de Maria Lua e já levei a mamadeira que estava previamente preparada, esperando por ela. Já era tarde e eu estava simplesmente perdida, sem saber o que fazer.
Pavor! Eu sentia nitidamente isso por todos os meus poros. E jamais eu tive tanto medo de perder algo como naquele momento. Em 28 anos, era a primeira vez que me sentia daquela forma: uma dor completamente nova... Porque ela doía no coração, no corpo, na mente e na alma.
Olhei minha pequena sugando o leite enquanto balançava as pernas na minha direção, cutucando-me com os pezinhos. O olhar fixo no meu, um sorrisinho do nada, sem deixar de sugar o leite.
Uma lágrima minha caiu sobre o rostinho dela, que limpei e ela empurrou com a língua o bico da mamadeira. O tradicional restinho de leite ficara ao fundo. Sorri e toquei seu nariz minúsculo:
- Eu amo você!
Ela deu um grito e abriu um sorriso sem dentes, que conseguia aquecer meu coração e corpo mais do que o sol sentido em Mercúrio.
- Espero que eles tenham acreditado na mamãe.
Ela gritou novamente. Os dedos grudaram meus cabelos, enquanto puxava.
- Ok, sei que devo fazer isso com aquela desclassificada da Anya – olhei para os pés dela, chutando o ar – Vou aceitar sua sugestão disso para Breno.
Comecei a brincar com ela, esquecendo por um tempo o que estava acontecendo. Eu já disse que a risada dela era o som que eu mais gostava de ouvir? Sim, até mais que Jon Bon Jovi no último volume, tocando These Days.
Geralmente quando ela acordava à noite para se alimentar não demorava muito para dormir. Mas não foi isso que aconteceu naquela noite. Passava da uma hora da madrugada e eu ainda tentava fazê-la dormir, com o coração apertado e a sensação de que tudo daria errado.
Peguei o celular e liguei para Ben. Ele atendeu só na segunda vez. A primeira chamou até cair.
- Babi?
- Ben, desculpe incomodá-lo. E seja lá o que está fazendo com Tony, precisa parar tudo e prestar atenção no que eu vou dizer.
- Ah, não me diga que você fodeu tudo.
- Não, desta vez não fui eu. Mas fodeu tudo, amigo.
- O que aconteceu?
- A mãe de Salma e o padrasto vieram aqui no início da noite.
- Eu estou no café da manhã, Babi. Então... Já é madrugada aí.
- Sim, e estou com Maria Lua deitada no tapete, rodeada de brinquedos que ela não consegue pegar. Mas isso não importa, porra. Nem o tempo, nem nada.
- O que a desclassificada queria?
- Eles queriam Maria Lua.
- O quê?
- Ben, ela sabia sobre a nossa filha e também sobre o dinheiro.
- Como?
- Como? Por isso estou ligando para você.
- Não acha que fui eu que contei, não é mesmo? Eu nem os conheço pessoalmente.
- Não perdeu nada, amigo. E não, claro que não acho que foi você. Mas então... Quem foi?
- Alguém do hospital? Todos souberam o que aconteceu com Salma.
- Sim... E ninguém sabia sobre o dinheiro. Só pode ter sido...
- Não vai culpar Daniel de novo, não é mesmo?
- Não tem outra pessoa que sabia a verdade a não ser nós três.
- Como podemos ter certeza? Salma se relacionava com tantas pessoas.
- Não depois de morrer. São informações que não há como saber assim.
- Será que ele seria capaz, Babi?
- Claro que sim.
- E o que você disse ao casal?
- Inventei tantas coisas que nem sei ao certo o que eu disse, pois não lembro, de tão nervosa que fiquei. Mas tentei convencê-los de que a criança era minha filha e não de Salma.
- Por que não disse que não havia criança?
- E se ela chorasse, como da outra vez, quando Celine esteve aqui? Foi o que me veio à cabeça na hora.
- Babi, ninguém em sã consciência daria a guarda de Maria Lua aos dois. Falta pouco tempo para Heitor saber a verdade. Ele é o pai e a história se encerra por aí.
- E se ele não quiser assumir a filha?
- Ele não faria isso.
- Ben, por Deus, eu ouvi da boca dele que não tem interesse em filhos... A não ser... Comigo. Minha cabeça embaralhou agora, juro.
- Babi, acalme-se. Precisamos raciocinar direito e ver o que vamos fazer.
- E se ele rejeitar Maria Lua quando souber como ela veio ao mundo? Eu conheço Heitor. Ele vai ficar puto, com raiva, com ódio, furioso, quebrar tudo.
- E depois vai esfriar a cabeça, olhar para o nosso raio de sol e descobrir que é o que ele tem de mais importante.
- E se isso não acontecer? Se ele resolver que não quer uma criança? Eles ficarão com Maria Lua.
- Não... Nós entraremos na justiça pela guarda.
- Ben, mentimos numa certidão de nascimento. Eu tenho duas passagens pela polícia.
- Por bobagens, porra.
- Você é gay.
- Com muito orgulho.
- Ben, acorda: quem daria uma criança nas mãos de um gay e uma mulher com duas passagens pela polícia e envolvida anos com um viciado? Eles vão investigar nosso passado, revirar cada podre nosso.
- Eu sou gay, mas não tenho passagens pela polícia. E... Está tentando dizer que minha opção sexual é empecilho para adoção, Babi?
- Você sabe que é... Não finja que está tudo bem. Nunca esteve.
- Não dariam para os avós, que não valem nada.
- E então nossa filha iria para um lar de adoção?
- Allan ficaria com ela.
- Ele está com câncer terminal, porra. Quanto tempo você acha que ele tem?
- Mandy?
- Eu vou falar com Heitor. Não posso esperar até segunda.
- Precisa de ajuda? Tipo... Uma chamada de vídeo em grupo?
- Não, obrigada. Vou ter que fazer isso sozinha.
- Ok, chame ele até sua casa e mostre a bebê. Já saberemos a reação de imediato.
- Estou com medo.
- Não fique. Deus não faria isso conosco. Somos bons, Babi. Não merecemos perder nosso raio de sol.
- Só de pensar na possibilidade de ficar sem ela, eu sinto meu corpo todo tremer.
- Vamos fugir com ela.
- Eu... Já pensei nesta possibilidade.
- Você vai chamar Heitor. Deixará além da pequena, os diários de Salma, já com as partes separadas que lhe interessam. Temos a nosso favor o amor que ele sente por você. E os escritos de Salma são a prova de que ela fez tudo sozinha, desde o início, pois ali ela relata toda forma como você se envolveu com Heitor e da decisão de não contar a verdade e assumir Maria Lua sozinha.
- Sim... Ali está toda a verdade. E caso eu sinta a mínima possibilidade de ele rejeitar nossa Maria eu vou para Itália imediatamente. Juntos decidimos o que fazer.
- Como vai voar com a menina se a certidão dela não consta o seu nome, Babi?
- Eu... Eu... Peço ajuda de Sebastian.
- Ele não vai mais aceitar participar disto, Babi.
- E ele é minha única salvação, se tudo der errado.
- Arrume as malas e deixe tudo pronto. Se Heitor disser não, vamos sumir no mundo. Ninguém vai tirar Maria de nós, Babi.
- Ben... Obrigada. Eu sabia que poderia confiar em você.
- Mas não fique assim, Babi. Por mais que os pais de Salma cheguem a saber a verdade, não podem pegar a menina sem um mandado ou algo do tipo. Não entregue ela, em hipótese alguma.
- Eu sei. Jamais faria isso.
- Eles terão que fazer tudo judicialmente. Então temos tempo.
- Eles não querem a menina. Só querem dinheiro e sabemos disso.
- Sim, eu sei. A questão é que somos dois pobres coitados, talvez mais precisados do que eles.
- Tem Mandy. Posso pedir ajuda com dinheiro.
- E acha que um dia eles vão parar de pedir? Claro que não, Babi. Maria Lua será a fonte deles. E depois que você quebrar sua avó, eles vão atrás de Heitor.
- Meu Deus... Estou em desespero agora.
- Precisa se acalmar, ou tudo pode ficar pior.
- Eu... Vou ligar para Heitor e pedir para ele vir até aqui.
- Faça isso. E depois me dê notícias, por favor. Não me deixe sem saber o que aconteceu, por Deus.
- Não se preocupe. Farei isso assim que tiver uma posição de Heitor. E... Tony?
- Ainda estou no hotel. Não o procurei.
- Mas vai procurar, não é mesmo?
- Claro que sim. Acha que vim para outro país curtir o café da manhã do Hotel e poder me dar ao luxo de dormir oito horas por noite sem dar de mama?
Comecei a rir:
- Só você para me fazer rir em meio ao caso, meu lindo. Boa sorte. Amo você.
- Boa sorte com nossa filha. Amo você, Babizinha, do fundo do meu coração.
Olhei Maria Lua deitada no tapete, olhando para todos os lados, o colorido chamando sua atenção, mas não se importando com os brinquedos.
- Agora vamos para a parte mais difícil, meu raio de sol: convencer o seu papai de que você é real.
Peguei o telefone e disquei para o meu DESCLASSIFICADO MOR.
- Bárbara?
- Heitor, você pode vir na minha casa... Agora?