Capítulo 100
2627palavras
2023-02-06 11:39
Contei a Ben sobre o ocorrido pouco tempo antes de ele chegar. Quando acabei, ele ficou um tempo calado, parecendo processar tudo que tinha ouvido. Quando me fitou, perguntou:
- Passa pela sua cabeça não contar a verdade a Heitor, em função da ameaça dela?
- Não. Embora eu tenha ficado um pouco apreensiva, sei que isso é para o bem de Maria Lua. Não podemos continuar com esta mentira, que a prejudica principalmente pelo fato da certidão de nascimento nos restringir pra caralho.

- “Caralho” não fere os ouvidos dela? – ele me encarou – Literalmente “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
- Ah, Ben...
- Quase que eu disse ao Thorzinho: “Tchau, lindo, até segunda-feira, na sua casa.”
- Nem inventa.
- Só pensei, não falei.
- Quando você começa?

- No início do próximo mês.
- Sabe o que me passou pela cabeça, Ben?
- O quê? Sinceramente, eu tenho medo do que se passa na sua cabeça.
- Que a princípio eu achei que Allan me receberia bem se soubesse que sou filha de Beatriz Novaes. Mas depois que Celine saiu, fiquei a imaginar se ele não vai me odiar. Afinal, sou a filha da mulher que talvez ele amou e que o traiu com Francesco.

- Ele traiu a sua mãe primeiro. Para mim ficou claro isso... Ela se vingou.
- Ben, sinceramente, acho que eu preciso dobrar meus remédios. Tenho medo de não dar conta de tudo isso.
- Dobre então, meu bem. Então já estará fazendo efeito quando falarmos com Thorzinho.
- Pare de chamá-lo assim, porra.
- Você nunca se importou, Babi.
- Não... Porque não sabia que Nicolete o chamava assim. Pelo visto, só ela e a loira do pau do meio usam apelidos para ele.
- Você deveria criar um... Bem original... Só seu.
- Gostoso? Amor da minha vida? Razão da minha insanidade? Desclassificado mor?
- Ah, me dá até calor! – ele se abanou.
Deu um tapa nele, que se defendeu com o braço:
- Ai, isso doeu.
- Você se comporte do lado dele, ouviu?
- Vou só cuidá-lo para você, eu juro. Deus me livre perder um pedaço dos meus cabelos, como você fez com a Barbie das trevas.
- Já que você chegou mais cedo hoje... Que acha de mexermos nas coisas de Salma?
- Você está preparada?
- Que tempo vou ter depois? Já estou fazendo contagem regressiva para ficar de lá para cá na casa de Heitor.
Ele suspirou:
- Estou orgulhoso de você, minha amiga do coração.
- Eu sei que vai doer, mas é preciso.
Uma hora depois e conseguimos fazer Maria Lua dormir, colocando-a na minha cama.
Estaríamos envolvidos nas coisas no quarto dela e queríamos que ela tivesse um sono tranquilo.
Assim que abrimos a porta do primeiro armário, o cheiro do perfume de Salma invadiu o quarto de tal forma que chegamos a ficar confusos.
- Eu a sinto aqui. – Ben disse.
- Eu também. – Mostrei meu braço arrepiado para ele.
Ela tinha muitas roupas. Encontramos tantas lingeries não usadas, ainda com etiquetas. Sapatos de todas as cores, tipos de saltos diferentes e acessórios e maquiagens. Salma sempre foi uma mulher muito vaidosa e gostava de vestir-se com cores alegres e de forma sexy.
- De que adianta tanta coisa, não é mesmo? – Ben começou a jogar as roupas com etiquetas numa sacola – Não se leva nada para o outro plano.
- Que não se leva, sabemos. O que ela deveria era ter usado tudo, não ter guardado nada para uma ocasião especial.
- Ocasião especial é o dia que se vive.
Peguei o vestido vermelho que havia pego emprestado para ir à casa de Allan Casanova, chegando coincidentemente na festa de aniversário de Heitor. O vestido ainda estava rasgado. E eu lembrava exatamente da cena de como aquilo havia acontecido. Foi como se minha mente refrescasse a tal ponto que eu conseguia sentir o cheiro dele no elevador, quando ficamos presos. Puxei meus cabelos para frente, como se precisasse deixar o pescoço e parte das costas pra que Heitor pudesse tocar minha tatuagem com sua boca.
- Babi, está me ouvindo? – Ben perguntou.
Balancei a cabeça, voltando ao presente, ao mundo real.
- Não... Eu estava longe. Dentro de um elevador, na verdade – levantei o vestido – Não posso me desfazer deste. Tem muita lembrança guardada neste tecido.
- Lembro desta ocasião. Eu avisei que o vestido não cabia em você. – Ele riu.
- Sabe o que me veio à cabeça agora, além de Heitor?
- Não.
- Como a vida é curta, Ben. Minha mãe estava comigo e um dia simplesmente se foi. Salma engravidou, fez mil planos e de uma hora para outra Deus mudou tudo que ela tinha traçado para o futuro. A porra do amanhã é uma loteria.
- E... A gente deixa tanta coisa passar – ele sentou no chão, abrindo outra porta do armário – Eu preciso rever Tony.
Arqueei a sobrancelha, enquanto o encarava.
- Eu dormi com tantos homens... Eu tentei ser feliz. Mas eu não consigo sem ele. Do nada, à noite, eu penso nele e nas poucas vezes que ficamos juntos. E se eu morrer amanhã e nunca dizer a ele que ainda o amo? Que não posso ser feliz sem ele?
Senti meu coração bater forte:
- Sei exatamente o que você está dizendo, Ben.
Ele abaixou a cabeça, tocando numa blusa de Salma, carinhosamente:
- Fico imaginando se ela conseguiu viver tudo que queria... Se falou tudo que tinha vontade para as pessoas. Ela sofreu no passado. E não tenho certeza se ela era feliz. Parece que sempre tinha uma nuvem sobre ela.
- Eu acho que ela foi feliz sim, da maneira dela. O que nunca vou entender é como ela se envolveu com Heitor. E o que se passou de verdade na cabeça dela quando engravidou. Como eu precisava entender... E isso nunca vai acontecer. Eu amo Heitor. Duvido que possa amar outro homem e sequer me envolver com alguém novamente. Jardel acabou comigo. Heitor foi a minha redenção. E os dois bastaram. Acho que tenho medo de encontrar outra pessoa, entende?
- Se dê uma oportunidade. Você merece ser feliz ao lado de Thorzinho.
- Eu tentei... Ele me mandou embora, esqueceu? Me fez juntar minhas coisas de forma humilhante. Mas sabe que isso não me importou tanto quanto ver a Barbie das trevas entrando na casa dele com tanta intimidade? Me senti tão ridícula, tão menosprezada, tão infeliz. Eu sempre deixei claro que queria que ele terminasse a porra dos relacionamentos dele – eu ri – Ben, eu me envolvi com um homem que tinha duas mulheres ao mesmo tempo e uma sabia da outra. Como eu poderia ser a terceira e aceitar isso? Não... Nunca. E sabe o que mais? Eu acho que pedi tão pouco para ele. E ele não foi capaz de me dar. Ele pôs a loira do pau do meio em vários lugares, menos fora da vida dele.
- Mas eu não acho que ele goste dela.
- Então qual o motivo de não a tirar de vez da sua vida? Ele disse que me amava. Eu consegui ver o sentimento nos olhos dele... Mas não em todas as suas ações.
- E você, Babi? Demonstrou seus sentimentos?
- Demorei a entender o que eu sentia de verdade por ele. Depois, teve a fase do luto: eu não queria aceitar o sentimento que crescia dentro de mim mais que as pernas de Maria Lua – ri – Eu fiz tudo errado, porque eu sou desastrada, egoísta, medrosa, covarde, imatura, idiota...
- Desclassificada? – ele enrugou a testa.
- Acho que sim. – Tapei os olhos com as mãos. - Mas de que adiantaria, entende? A loira do pau do meio sempre teve o lugar dela. E não vai ser eu que vou conseguir tirar.
- Não mesmo. Vai ser Maria Lua. Ela vai destronar a Barbie das trevas.
- Será? – meio que me perguntei em voz alta – Ou elas vão reinar lado a lado no futuro?
Ben levantou e pegou uma pilha de roupas, que caíram no chão:
- Eu vou procurar Tony. – Ele afirmou.
- Jura? – comecei a rir – Agora?
- Amanhã. Eu preciso ir atrás da minha felicidade – ele veio andando na minha direção, gesticulando, tropeçou na pilha e um caderno veio parar sobre meus pés, aberto. A caneta rolou de dentro dele, parando no rodapé.
Baixei a cabeça e consegui ler a seguinte frase: “Daniel é um terror na cama. Ele me fode com força, como se o mundo fosse acabar amanhã. O fato de ele tampar a minha boca pra que eu não emita nenhum tipo de som que possa acordar Ben e Babi, me deixa com ainda mais tesão.”
Fechei meus olhos, tentando não ler o restante.
- Isso é o que ela chamava de diário? – Ben pegou o caderno escrito com caneta da primeira linha, na página um, até a última, seguindo pela contracapa. – Ela tinha mencionado isso.
- Seria uma puta intromissão de privacidade.
- Ela está morta, caralho.
- Ben, quanta insensibilidade.
- Vai dizer que quem escreve um diário não faz para que seja lido após sua morte? Quem, em são consciência, escreve sobre sua vida para depois queimar ou jogar fora? É claro que ela queria que fosse lido, porra.
- Talvez você tenha razão.
Ele abriu numa página aleatória:
- Vamos ver o que ela escreveu aqui... “Às vezes ele pede para eu colocar uma peruca loura. Eu até comprei uma, não pegando mais emprestadas as da Babilônia. E quando eu gozo, ele me pede que o chame de “desclassificado”. Tenho medo que um dia ele me chame de Bárbara enquanto transamos.”
Senti meu coração batendo intensamente e o ar faltar nos meus pulmões.
- Ah, que porra é essa? – Ben me olhou.
- De quem estamos falando? – perguntei, quase sem voz.
Ele passou os olhos pelo escrito, lendo somente para si.
- Ben, fale, porra.
- Daniel.
- Desgraçado – bati na parede, com força, machucando a minha mão – Como ele foi capaz? Ela o amava... – senti as lágrimas escorrendo pelos meus olhos.
Ben fechou imediatamente o caderno. Pude ver os olhos dele lacrimejando:
- Talvez seja muito pessoal mesmo.
- Abre... Veja a data. – Pedi.
- Não sei se devemos.
- Não vai mudar de ideia agora. Temos que saber sobre o dinheiro que ela deixou para Maria Lua... E... O relacionamento dela com Heitor.
Ele abriu novamente na primeira página:
- Aqui é depois... Ela já estava grávida. Menciona a ecografia.
- Tem que ter mais destes cadernos por aqui – fui até o armário, jogando tudo no chão.
Cada pilha de roupas continha vários cadernos embaixo. Conforme eu ia achando, Ben ia pegando-os e organizando por data. Ao final, juntamos 15 cadernos brochura, pequenos, escritos por completo.
Havia anoitecido e não tínhamos sequer ligado as luzes dos outros cômodos da casa ou fechado as janelas. Estávamos completamente ansiosos e envolvidos naquilo.
- Vou pedir uma pizza – ele disse, olhando para os vários cadernos empilhados milimetricamente – Esta noite passaremos em claro.
- Não precisa, Ben. É só procurar por data o que precisamos.
Maria Lua começou a chorar. O quarto dela estava virado numa bagunça sem fim, com roupas, calçados e lingeries por todos os lados. Me embrenhei com os pés por cima de tudo, quase caindo, até chegar ao meu quarto, onde ela chorava na escuridão. Liguei as luzes, peguei-a no colo e vi lágrimas escorrendo:
- Acho que está com fome, não é mesmo? – um sorriso sem dentes apareceu entre as lágrimas – Esta mamãe precisa ser mais atenta – toquei seu nariz perfeito, tão pequeno quanto a ponta do meu dedo.
Preparei o leite e sentei numa poltrona confortável enquanto ela sorvia tudo de forma gulosa, deixando o restinho habitual ao final da mamada.
- Eu estou tão curiosa para saber como você foi concebida, meu amor! Ainda assim tenho medo de chegar nesta parte. Meu coração está batendo tão forte que temo ter um ataque. O que seu papai fez, hein? – ela começou a rir, os olhinhos brilhando, fixos nos meus – Eu amo aquele desclassificado. E quando você crescer, vai entender sobre homens como ele: completamente canalhas, mas que você não vive sem, daquele tipo que só de olhar, você se derrete... Explicando em poucas palavras: preciso quase de uma concha para juntar-me. E você, sendo a filha dele, também me deixa em maus lençóis, com estes olhos verdes que são como os dele, mas ao mesmo tempo o formato é igual aos dela. Eu preciso de colherinha pra você também, querida Maria Lua, luz da minha vida, nosso raio de sol.
- Ah, por meus sais. Você precisa vir aqui, Babi – Ben gritou – Agora! Traga água por favor. Ou melhor, preciso de algo mais forte... Bem forte.
Cheguei no quarto e olhei para ele, sentando no chão, com um dos cadernos abertos sobre os joelhos:
- Preciso de cachaça. – Ele me encarou.
- Não temos isso, Ben. Só tem leite para beber nesta casa... E você sabe disto.
- Deus, a que ponto chegamos! – ele olhou para o teto – Só tem leite para afogar as mágoas.
- Leia para mim, por favor. – Falei, temerosa.
- Eu não acho que Malu deva escutar não. Pode ficar traumatizada.
Suspirei:
- É tão grave assim?
Ele assentiu com a cabeça.
- Eu sempre imaginei que ele era um desclassificado... Sempre.
Os olhos de Ben não se desviaram do meu:
- Ele nunca foi. Você se enganou.
- Como assim?
- Salma ficou louca, literalmente louca. E só não acho que a pior coisa que ela fez na vida foi engravidar porque temos Maria Lua aqui conosco.
- Eu... Devo botá-la para dormir, mesmo ela tendo acordado agora?
- Pegue – ele me entregou o caderno fechado – Dobrei as páginas que lhe interessam, porque creio que você não vai querer ler mais nada depois disso.
Ele levantou e olhou pela janela, pensativo. Depois de um tempo, disse:
- Caralho, a gente nunca conhece as pessoas de verdade.
- Ben, não me assuste.
- Eu estou tão decepcionado.
Olhei Maria Lua, que se remexia parecendo querer deixar meu colo e sair andando. Ben veio até mim e pegou-a:
- Vou dormir com ela esta noite, Babi.
- Mas...
Ele tocou meus lábios, me impedindo de falar:
- Primeiramente, você precisará de um tempo sozinha para absorver tudo isso. Segundo: vou mesmo atrás de Tony, agora mais do que nunca. Eu preciso dele. Só vou desistir se ele disser que não me ama da forma como eu o amo.
- E... Vai me deixar sozinha?
- Segunda-feira estarei de volta, eu juro.
Deixei-o levar Maria Lua e peguei o tal diário que era dividido em tantos cadernos que mal ficavam numa pilha sem cair. Mas era só um que me importava... O que mencionava “ele” e a forma como transaram. Por mais que doesse em mim (e eu sabia que doeria de uma forma talvez nunca sentida antes), eu precisava saber a verdade. Se ela gostou; se ele falou palavras bonitas e ao mesmo tempo ordinárias ao pé do ouvido dela; se ela teve um orgasmo intenso como eu tinha quando ele me fazia gozar; se ela fez sexo oral nele... Ou ele nela.
Deitei na cama e abri na primeira página dobrada. Só eu mesma: fazer questão de ler o que eu sabia que acabaria comigo, talvez me destruindo por completo.