Capítulo 87
2198palavras
2023-02-06 11:33
- Ela só precisa disso: amor e carinho. E acompanhamento médico. Gostaria de seguir acompanhando o desenvolvimento dela.
- Maria Lua é uma guerreira, como a mamãe. – Falei.
- Ainda não chamei o pai. Ele não sabe o que aconteceu.
- Ele não é o pai – falei. – Era o namorado de Salma.
- Entendo... Então... Você é familiar?
- Amiga.
- Onde estão os familiares dela?
- Longe. E eles não tem capacidade financeira nem emocional para cuidar da bebê.
- Então eu acho que temos um problema aqui.
- Como assim? – arqueei a sobrancelha, confusa.
- Se despeça da bebê e vamos conversar um minuto ali fora. – Ela disse.
- Tudo bem. – Concordei, ainda tentando entender o que ela queria dizer.
A médica saiu e a enfermeira permanecia ali, sentada, fazendo algumas anotações.
Olhei a menina perfeita aconchegada a mim e um misto de sentimentos se apossou de todo meu ser. Era a sensação de perda com a euforia de chegada de uma criança. Eu tinha vontade de gritar, chorar e ao mesmo tempo sorrir sozinha.
- Eu vou cuidar de você, Raio de sol... – beijei a face virgem, de pele tão macia quanto algodão – Posso jurar que tive um “imprinting” no primeiro momento que a vi.
A enfermeira levantou e veio até mim:
- Hora de ela descansar. Será alimentada e descansará um pouco. O parto não é só cansativo para a mamãe, mas também para o bebê.
Fiquei um pouco apreensiva de entregar Maria Lua para ela, que teve que fazer certa força para retirar a menina dos meus braços.
- Prometo que ela será bem cuidada. Não se preocupe.
Ela colocou-a de volta no berço.
- Não é melhor cobri-la? – perguntei.
- Não precisa. O ar está ligado em temperatura ambiente. – Sorriu.
Saí dali insegura, andando devagar, como se não fosse correto deixar aquela coisinha tão pequena sozinha num berço. Mas estava curiosa quanto ao que a médica queria dizer-me.
Assim que cheguei do lado de fora da maternidade, ela me levou até a sala da recepção, onde eu estava anteriormente.
- Sei que sua cabeça deve estar um turbilhão neste momento. E antes mesmo de você chegar, Salma já dizia que deveria cuidar da bebê. Acho que ela temeu que pudesse morrer antes de lhe pedir.
- Mas... Ela conseguiu dizer. – falei, sentindo a voz embargada.
- Se o homem lá fora não é o pai, a menina será registrada somente no nome da mãe? Isso dá direitos à família de Salma, futuramente. Queria alertá-la sobre isso.
- Há algo que eu possa fazer para evitar?
- Infelizmente não. Mas você sabe quem é o pai?
Sim, você também sabe, tenho certeza. Pensei. Afinal, todos em Noriah Norte conheciam Heitor Casanova.
- Sim. – Respondi, o nó na garganta voltando.
- Aconselho que ele registre e o nome esteja na certidão. Evitará problemas futuros.
- Obrigada pelo conselho. Mas ele não vai registrar. – Garanti.
Porque eu não deixaria Heitor registrar a bebê. Ele não teria direito nenhum sobre ela. Deixou minha amiga sozinha durante a gravidez, sequer lhe deu apoio financeiro... Em momento algum se preocupou com o que seria dela e da criança.
- Não teme a família da mãe querer a guarda?
- Não. Eles sequer sabem sobre a gravidez de Salma. Jamais quereriam outra boca para alimentar – garanti – O pai está fora de cogitação. Ele não vai sequer tocar na bebê... Nunca.
- Mas...
- A decisão é minha. – Fui um pouco ríspida.
Por Deus, meus nervos estavam a flor da pele e a médica enchendo minha cabeça de preocupações sem sentido, como a família de Salma querer Maria Lua. Sequer quiseram a própria Salma, o que quereriam da filha dela? Eram pessoas de mau caráter, doentios, interesseiros, ladrões, abusadores...
- Ok, se é assim que você quer... Realmente não tenho nada a ver com isso. Só quis ajudar.
- Obrigada pela boa intenção. Quando Maria Lua vai embora? – Imediatamente troquei de assunto.
- Eu ainda não sei. Depende de como ela vai reagir a partir de agora.
- Posso ficar aqui?
- Não é preciso. Vá embora e descanse. Você também precisa.
- Não... Não vou me afastar da bebê.
- De nada adianta ficar aqui. Você não vai poder ficar com ela, no berçário.
- Ainda assim... Vou ficar no hospital.
- Amanhã eu volto para vê-la. Então talvez já tenha uma previsão de alta. Ela está com pouco mais de dois quilos apenas. Certamente não vai ser amamentada no peito. Vamos ver como tudo se encaminha, ok?
- Posso... Voltar lá e ficar olhando-a pelo vidro?
- A maternidade fica aberta 24 horas... Mas você não tem acesso ao interior dela todo este tempo. Mas poderá vê-la pelo vidro, sim.
- Está bom para mim.
Ela se foi e eu fiquei ali uns minutos, tentando saber exatamente o que eu pensava naquele momento. Mas passavam tantas coisas pela minha cabeça, que chegava a dar uma sensação estranha, como se estivesse beirando a loucura.
Fui novamente pelo caminho que dava na maternidade.
Parei, com as pernas se recusando a se movimentarem, quando percebi Daniel e Ben olhando pelo vidro, acenando para nosso pequeno raio de sol.
Os olhos de Ben encontraram os meus. Eu não tinha certeza se ele sabia ou não sobre nossa amiga.
Ele veio até mim. Parou na minha frente, sem dizer nada. Abri meus braços e ele se agarrou a mim. Foi um abraço forte, apertado, cheio de sentimentos.
- Nossa filha é linda – ele disse no meu ouvido, ainda sem se afastar. – Como está Salma? Me diga que ela está bem, se recuperando.
Senti o coração apertar e acelerar pela milésima vez naquele dia. Não, a porra do médico deixou para eu dar a notícia.
Agarrei a roupa dele com força, impedindo que ele se movimentasse, de antemão:
- Ela não resistiu. – Eu disse, sem respirar.
Ele tentou se desvencilhar, mas eu não deixei. Precisava do cheiro dele, do coração batendo junto do meu. Por mais força que ele fizesse, eu não o deixava sair dali, me movendo junto dele, com a força que emanava de seu corpo, que tentava se soltar de mim, inutilmente.
- Não, não é verdade... Não é... – Ele disse.
Eu não tive palavras. E sabia que não precisava.
- Me larga, porra... Agora. – Ele gritou, enquanto eu seguia segurando sua camiseta.
As mãos dele retiraram meus braços com força, rasgando a camisa por completo, como se aquele tecido fosse o que eu tinha de mais importante naquele momento.
Ben olhou para a roupa rasgada e depois para mim. Os olhos dele escorriam lágrimas. Balançou a cabeça e foi para a parede, dando socos contínuos, ecoando pelo corredor, soltando um grunhido de dor, feito um animal ferido, até o sangue misturar-se à tinta branca que cobria o concreto.
Daniel veio até nós, já sabendo o que tinha acontecido, mesmo que ninguém tivesse lhe contado. Tentou tirar Ben dali, enquanto todas as pessoas se voltam a nós. Mas era inútil tentar tocá-lo.
Ben ficou forte como uma rocha e seguiu, até não ter mais forças. Dois seguranças chegaram em seguida e o retiraram, sendo seguidos por mim e Daniel, até a porta da rua.
- Acalme-se ou chamaremos a Polícia. – Um deles ameaçou.
- Precisamos de ajuda... – falei, a voz quase não saindo. – A mão dele... Acho que quebrou. Por favor...
- Primeiro ele se acalma. Depois entra para ver o ferimento. Pessoas doentes estão aqui. É um ambiente de silêncio.
- Perdemos alguém importante há pouco tempo – explicou Daniel – É... Complicado.
- Acalme-o e ele volta... Só isso. – O homem pediu, mais brando.
Eles saíram. Não havia muito movimento ali fora. Creio que já era madrugada. Ben sentou no cordão da calçada, colocando a cabeça entre os joelhos e chorando... Alto, com dor, com sentimento... Feito uma criança.
Como eu queria poder gritar e botar para fora tudo que eu sentia naquele momento. Eu também tinha vontade de berrar, brigar com Deus, culpá-lo pela dor que eu sentia.
Mas não saía nada. Ben precisava de mim. Fui até ele e agachei-me, abraçando-o por trás de seu corpo, pelas costas.
- Por que dói tanto, porra? Eu nunca senti isso antes... Como se tivessem arrancando um pedaço de mim. – A voz quase não saía.
Daniel se afastou de nós, ficando. As mãos dele estavam no bolso e ali permaneceram. Ele não esboçou nenhuma reação. Ficou mudo, como se não estivesse acreditando que aquilo realmente estava acontecendo.
- Não é justo, porra! – Ben gritou.
Percebi o sangue jorrando da mão dele e retirei a bandana do Bon Jovi da cabeça, enrolando por toda a mão, tentando estancar o sangue que caía pela roupa dele e no chão.
- Chora, grita... Faz tudo isso. Ainda assim, não vai passar. Vai continuar doendo. Para sempre – Falei, certa do que dizia – Vamos nos acostumar a viver sem ela, mas a saudade será eterna.
- Eu não vou me conformar nunca... Ela deixou Maria Lua... O bebê que tanto queria... Os dias serão cinzas para sempre, Babi?
Sentei ao lado dele e peguei sua mão, apertando:
- Não serão cinzas... Porque ela nos deixou o seu raio de sol.
- O “nosso” raio de sol. – Daniel veio até nós.
Percebi os olhos dele avermelhados.
- O nosso raio de sol. – Confirmei.
- Eu... Vou providenciar tudo para o funeral. – Ele avisou, saindo dali.
Sim, eu nem havia lembrado que era necessário providenciar aquilo ainda. Estava confusa, sem ação...
- Você estava com ela... – Ben me olhou.
- Sim... Mas fui retirada antes. Vi Maria Lua nascer. E logo em seguida... Salma se foi. Fizeram o possível, eu tenho certeza.
- Como você... Consegue ser tão forte? – Me encarou.
- Eu não sou... Não sou. – Falei, confusa.
- Ela... Disse algo?
- Pediu que eu cuidasse de Maria Lua. A pediatra disse que ela já havia mencionado antes de eu chegar na sala que queria que a menina ficasse comigo.
- Você não vai me afastar da bebê, não é mesmo? – Pergunto, com a voz fraca.
- Não... Nunca faria isso.
- Eu não consigo acreditar que isso está acontecendo, Babi. Parece um pesadelo.
- Ela me disse mais uma coisa, Ben.
Ele me encarou novamente, as lágrimas parecendo jorrar de seus olhos:
- O quê?
- Revelou o nome do pai da bebê?
- Quem é?
- Ela disse... Que é Heitor.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo. Depois limpou as lágrimas e riu:
- Não. Ela deve ter se enganado.
- Não, ela não se enganou. Eu ouvi claramente. E antes disso me pediu perdão.
- Mas... Heitor a ama, Babi. Eu não tenho dúvidas disso. Certamente foi antes de ele conhecer você. Claro que foi antes... Ela descobriu a gravidez logo depois que vocês dois se conheceram.
- Eu lembrei que ela sempre fugiu da presença dele.
- Não tem nada a ver com você, Babi.
- Ele dormiu com a minha melhor amiga. O desclassificado transou com Salma, Ben. Eu não vou perdoá-lo... Nunca. E se ela contou a verdade a ele, que não quis assumir?
- Lembro claramente que ela garantiu que não tinha contado e que jamais contaria. No início disse que sim, mas depois mudou de ideia.
- Meu Deus... Ela disse que ficaríamos ricos. – Me recordei.
- E depois, sabendo que vocês dois se apaixonaram, certamente voltou a atrás e quis mudar de ideia. Mas era tarde demais, porque Maria Lua já estava na barriga dela. Thor não tem culpa.
- Não tem culpa de dormir com ela? – eu ri, ironicamente. – Um canalha, que deve ter dormido com todas as dançarinas da boate. Pra mim esta história morreu.
- Vai esconder dele também? Acha justo?
- Ela não ia contar. Já havia garantido isso. Vou realizar o desejo dela: cuidar de Maria Lua e não contar a Heitor. Quero ele longe da criança.
Lembrei das palavras dela, me olhando no fundo dos olhos: “Precisa fazer com que ele saiba...”
- Se ele souber, vai tirá-la de nós, Babi – Bem disse, pensativo, olhando ao longe - Não vai deixar a filha aos cuidados da mãe da menina. Ele tem direitos sobre Maria Lua. E não podemos ficar sem nossa bebê. Ela é tudo que nos resta de Salma. Ela pediu que você fizesse isso por ela. E não vou deixá-la sozinha, Babi... Nunca.
- Eu sei disto. Morro, mas não entrego nossa filha... Juro.
- Ele nunca pode saber... Ou estamos fodidos.
- Não se preocupe. Ele não saberá. É um segredo... Só nosso. E não vou procurá-lo. E caso ele o faça, o afastarei definitivamente.
- Venha, Ben. O médico vai atender você. – Daniel disse. – Precisamos que olhem sua mão. Está feia e sangrando bastante.
Levantamos eu e Ben. Nossas mãos se enlaçaram e andamos em direção à porta do hospital, mais cúmplices do que nunca. Jamais alguém saberia do nosso segredo.