Capítulo 4
2446palavras
2022-12-17 12:45
- Você me chamou de “desclassificado babaca”? Quem pensa que é? – Ele veio na minha direção, furioso e eu fui andando para trás, amedrontada.
Quando ele chegou próximo, coloquei os braços na frente do rosto, temendo que ele fosse me bater.
Um longo silêncio pairou entre nós. Fui retirando meus braços, vagarosamente, sentindo os olhos dele sobre mim.
- Eu... Não vou bater em você. – Ele falou aturdido.
- Eu... Não achei que fosse... – Menti.
- Chame os seguranças e mande retirá-la daqui imediatamente. E exija que a joguem para o lado de fora da boate. Certamente uma paparazzi disfarçada. – Falou a mulher.
- Papa... Papa... – a palavra não saía. A bebedeira me impedia de raciocinar muito bem – Sou só uma frequentadora desta porra... Foi um acidente... Entrei no lugar errado.
- E quem me garante que você não vai espalhar aos quatro cantos do mundo o que viu aqui? – Ele disse com os olhos frios.
Ele usava uma camisa branca, aberta uns dois botões. Tinha marca de batom na gola e no peito dele. Levantei os olhos, encarando-o e ele foi sarcástico:
- Algo aqui lhe interessa? – Passou a mão no peito.
- Claro que não... Des... – A voz morreu nos meus lábios.
- Acho que você diria “desclassificado”. – Respondeu por mim.
- Então você entendeu... – Virei, cambaleante.
- Não vai deixá-la sair assim, não é mesmo, Thor?
- Olhe para ela... Mal deve saber o próprio nome. Chega a dar dó... Ou talvez só queria me ver...
Virei imediatamente:
- Ver você? Quem pensa que é? Por que eu quereria ver a garota do meio do pole dance fazer boquete em você? Se acha importante? Foi só uma porta errada... E entrei nesta porra de labirinto de corredores e...
Foi então que meus olhos encontraram os dele: “Bon Jovi”. Sim, tinha um quadro dele na parede, junto com Richie Sambora, David Bryan e Tico Torres. Estavam sentados numa mesa cheia de bebidas, naquela boate, com... Meu Deus... Aquele homem que estava a minha frente junto deles.
Meu coração quase saiu pela boca. A loira oxigenada seguia falando, mas meus olhos estavam tão fixos na imagem que eu não conseguia ouvi-la.
- John... – apontei para a foto – Richie... David... E... – olhei para o homem a alguns passos de mim – Você.
Ele arqueou a sobrancelha e cruzou os braços, curioso.
- Eu... Amo eles – me ouvi confessando – Você... Esteve com eles... Pessoalmente?
- Anos atrás – ele deu de ombros – Shakira – Mostrou a foto da cantora com ele, na boate.
Observei que ele estava em todas as fotos. Eu estava na frente do dono da porra toda: Heitor Casanova. Ele parecia diferente nas revistas e entrevistas. Ou talvez eu nunca tivesse prestado muita atenção nele. Mas continuava sendo um idiota que teve a sorte de nascer rico e esnobava todo mundo. Um convencido babaca, que se achava melhor que todos à sua volta.
- Fora! – Disse a mulher, ficando frente a frente comigo, com o dedo em riste, quase na minha cara.
- Eu até vou... Mas preciso de ajuda. Não sei como sair desta porra de lugar.
Ela pegou o celular do bolso do homem e ligou para alguém. Ficamos os três ali, nos encarando: ele de braços cruzados, ela com o braço em torno dos ombros dele, para me provar que era o seu par, e eu tentando equilibrar meu corpo e não fazer xixi na frente deles, de vez em quando olhando meu ídolo lindo estampando a parede.
Chegou um homem moreno, de cabelos raspados, vestindo um terno preto com camisa da mesma cor por baixo do casaco. Tinha uma espécie de fone no ouvido e não menos que dois metros de altura.
Olhei para cima, encarando seus olhos escuros e sem expressão.
- Retire-a daqui imediatamente. – O homem ordenou a ele, com voz firme.
O segurança pegou meu braço, não com muita força.
- Eu preciso ir ao banheiro. – Falei para ele enquanto me conduzia pelo corredor.
- Ei, espere! – O homem que eu imaginava ser o dono da boate falou, fazendo-nos virar na direção dele.
Foi então que ele veio até nós, com os olhos fixos nos meus, estendendo a mão na minha direção.
Apertei a mão dele, segurando os dedos, confusa, e virei as costas.
- O cartão, “senhora Bongiovi”. – Ele disse, com a mão ainda estendida, sarcasticamente.
Entregar o cartão era assinar a demissão da minha melhor amiga. Num impulso, coloquei o cartão, até então guardado a sete chaves na mão fechada e botei dentro do sutiã, sentindo o plástico na minha pele quente.
Os três ficaram me olhando, enquanto falei, enfática:
- Se quiser, vai ter que retirar daqui.
- Sua... – a mulher tentou avançar em mim, sendo impedida por Heitor Casanova e fazendo o segurança me levar um passo para trás – Vadia...
- Quer que eu retire, senhor? – Perguntou o segurança.
- Quem tocar em mim, vou acusar de importunação sexual. – Ameacei.
- Vagabunda... – A loira me olhou com desdém.
- Sinto muito... Mas eu não quero foder a vida de ninguém.
- Destrua ela, Thor. – Ela olhou para Heitor, com tom de voz suave e ao mesmo tempo firme.
- Jogo ela na sarjeta? – O segurança perguntou.
Os olhos dele se fixaram nos meus. Eu implorei por piedade no meu íntimo, mesmo sem dizer. Sabia o poder que ele tinha. Eu era como um inseto, pronto para ser pisado ou libertado, dependendo da ordem dele.
- Na rua... Fora da Babilônia – ele disse firmemente – Não volte aqui... Ou não serei tão piedoso da próxima vez.
- O que eu fiz, afinal? Foi um acidente... Só isso.
- Não quero vê-la na minha frente. Nunca mais na vida.
- Obrigada... Pela piedade... Meu senhor! – Curvei-me debochadamente na frente dele.
- Anon, leve esta louca daqui imediatamente ou eu vou ter um surto. – Disse a mulher que me fazia ter que olhar para cima para encará-la, batendo o salto dourado no chão, com os braços cruzados.
Virei as costas e deixei o homem me levar, sem contestar. Logo dobramos no corredor e seguimos reto, sem descer as escadas por onde entrei.
- Ei, Anon... Poderia, por favor, me deixar ir ao banheiro? Eu vou fazer xixi na calça... Ou melhor, no vestido. Tomei três chopes e preciso urgente esvaziar a bexiga.
Ele me olhou, de cima, porque era um monstro de um homem. Sem dizer nada, seguiu o caminho até pararmos na frente de uma porta, escrito “sanitário feminino de funcionárias”.
- Obrigada, Anon... Você é muito bondoso. – Debochei.
Entrei no banheiro rapidamente e corri até o vaso sanitário, esvaziando a bexiga vagarosamente e sentindo minha ansiedade se ir por completo.
Dentre as coisas que me deixavam impaciente, ficar com vontade de fazer xixi era uma delas. E eu era uma pessoa que fazia muito xixi. Já até achei que era anormal, mas o médico explicou que era bom, pois eu tomava muita água.
Então ser “mijona” não tinha a ver com endometriose.
Ah, endometriose... Por que não fiquei em casa pensando em você? O que estou fazendo neste lugar, que nada tem a ver comigo? Só levei tapa na cara aqui... E minha estadia durou pouco.
Ouvi uma batida na porta:
- Ainda está aí, senhora Bongiove?
Abri a porta e me desatei a rir na frente de Anon. O abracei, sendo que minha cabeça ficava abaixo do peito dele:
- Fazia tempo que eu não ouvia algo tão fofo!
Ele me afastou de si e me encarou, confuso, arqueando a sobrancelha.
- Bem, eu não me chamo senhora Bongiove... Porque este é o sobrenome do meu ídolo... No caso, sobrenome verdadeiro. O seu chefe, aquele desclassificado, usou isso de forma irônica, entende?
- Não. – Ele disse seriamente.
Lavei minhas mãos enquanto ele me observava. Depois enganchei meu braço no dele:
- Vamos, Anon. Me diga, de onde vem este nome? Eu nunca ouvi na vida... É diferente.
- Não sou pago para conversar, senhora Bongiove.
Eu ri:
- Ok... Mas não custa me explicar. Afinal, você nunca mais vai me ver de novo em toda a sua vida. E eu fiquei muito curiosa.
- É de origem tailandesa. Mas minha família não é de lá.
- Você sabe o que significa?
- Alegria.
- Que diferente. De onde sua mãe tirou?
- De um filme.
- Achei que fosse de origem viking. Ou um tipo de deus... Algo assim.
Ele não falou nada. Descemos uma escadaria e ele abriu uma porta corta-fogo, onde tive a visão da rua, do lado de fora da boate.
Suspirei:
- Foi tão difícil entrar aqui... E tão rápido para sair. Eu sou uma desastrada azarada, esta é a verdade. Fui cair justo no lugar onde Heitor Casanova e sua esposa estavam.
- Adeus, senhora Bongiove. – Ele disse, fechando a porta.
- É Novaes... – Falei para mim mesma, já que Anon não estava mais ali.
Sentei no cordão da calçada. Precisava colocar meus pensamentos em ordem. Salma estava trabalhando e eu não queria estragar a foda de Ben, sabendo que ele não fazia sexo há um tempinho também.
Peguei meu telefone e mandei uma mensagem no grupo que tínhamos em comum:
“Amores, eu fiquei um pouco bêbada e vou chamar um motorista de aplicativo e dormir na casa da minha avó. Tenham uma noite maravilhosa.”
Chamei o motorista e segui diretamente para o sítio, que ficava longe dali.
Depois de quarenta minutos, chegamos à estrada de chão. E assim seguiríamos por mais vinte minutos.
A área de terra da minha avó era cercada por madeiras brancas, as horizontais apoiadas nas verticais, deixando vãos, de onde se via absolutamente tudo. Abri o portão de madeira e fiz o motorista seguir o trajeto dentro da propriedade, até chegar na casa.
Apertei a campainha. Usar a chave e subir ao quarto dela para pedir dinheiro para pagar a corrida iria assustá-la.
Não demorou muito e ela desceu. Ficou surpresa ao me ver.
- Boa noite, vó... Desculpe chegar este horário... Mas... Poderia pagar o motorista e depois explico?
- Claro... – Ela voltou para dentro de casa e pagou em dinheiro o homem.
Entrei e ela fechou a porta. A lareira ainda tinha brasa terminando de queimar. Mandy usava um roupão fofinho. Pegou uma manta do sofá e colocou sobre mim:
- Está frio para você estar praticamente pelada, menina.
- Eu fui sair com Ben e Salma... E acabei me entediando. Não queria atrapalhar a noite deles e pensei em dormir aqui. Pode ser?
- Claro, Babi. Venha...
Ela colocou o braço sobre meus ombros e me levou até o quarto.
- Quer conversar?
- Não... Estou cansada. Mas prometo passar o dia aqui amanhã.
- Fico tão feliz por você estar aqui... Mesmo chegando na minha casa durante a madrugada e quase me matando do coração. – Riu.
Ela me deu um beijo na testa e fechou a porta. Deitei na minha cama, de sapato e tudo mais. Ainda tinha alguns pôsteres de Bon Jovi e banda grudados na parede e aquilo me lembrava o tempo que passei ali... E também trazia à minha mente Jardel. Eu não gostava de pensar nele. Me lembrava uma época em que eu fui submissa e condolente. Eu ainda tentava esquecer aquela Bárbara.
Lembrei do segurança Anon me chamando de senhora Bongiove e comecei a rir. Como podia uma pessoa não ter noção de quem era Bon Jovi? Será que trabalhava a pouco tempo para Heitor Casanova?
O certo é que era o homem de confiança, ou não seria chamado pela esposa dele.
Lembrei do olhar de Heitor Casanova sobre mim e senti raiva. Que homem prepotente. Foi só um erro... Eu jamais entraria ali escondida para ver alguém o chupando no meio do corredor. Será que não dava para perceber que eu estava bêbada e perdida?
Fechei meus olhos e adormeci em pouco tempo.
Quando acordei já passava das onze horas. Tomei um banho e coloquei uma roupa que tinha ainda no meu armário, de quando eu era jovem. Deveria me dar por satisfeita que consegui entrar numa roupa de anos atrás. Ficavam ali justo para emergências como aquelas. E por eu usar tanto o “emergencial”, já tinha levado quase tudo para o meu apartamento.
Assim que desci, minha avó já me esperava com café servido, bolos, pães, geleias caseiras e tudo que eu tinha direito.
Ela era sempre assim: tentava me engordar.
Parecia que eu não comia há séculos. Na verdade, eu sabia que quase nada se igualava à comida dela, nem ao seu café da manhã... Muito menos à forma como ela me tratava: com carinho.
Eu ainda não entendia como ela conseguiu ficar tanto tempo longe, sendo que era visível o amor que ela sentia por mim. Perguntei inúmeras vezes sobre meu pai e o passado de minha mãe e nunca consegui arrancar uma palavra dela. Houve um tempo que eu acreditei que ela realmente não soubesse de nada.
Mas o tempo passou e eu me tornei uma mulher. E sabia que ela provavelmente mentia. E eu não tinha certeza se queria saber a verdade. O que adiantava criar expectativas sobre meu pai se ele sabia sobre mim e nunca me procurou? Se um dia o encontrasse, não o perdoaria. Foram vinte e sete anos de rejeição e esquecimento. E nada poderia apagar isso.
Contei à Mandy sobre a visita ao ginecologista e ela me tranquilizou bastante. Também me disse que enquanto minha mãe morava com ela, não tinha endometriose. Expliquei o quanto estava difícil conseguir emprego. Então ela me ofereceu dinheiro, que eu não aceitei. A minha faculdade já havia sido paga por ela. Então o mínimo que eu deveria fazer, por obrigação, era arrumar um emprego decente na minha área. E mostrar que ela me deu as ferramentas e eu soube trabalhar.
No final da tarde, fui embora, deixando meu vestido da noite anterior guardado ali para futuras emergências, como a da noite passada.
Desta vez chamei um táxi e fui até a praça central. Passei pelo posto de gasolina onde conheci Jardel e desci ali. Ainda queria que aquele dia não tivesse acontecido. Mas ficou uma coisa que eu agradecia. E precisava encerrar aquele ciclo.
Andei pela rua estreita, de casas antigas. Abri o velho portão de ferro e bati na porta de madeira de lei almofadada, de paredes rosa envelhecida.
A porta se abriu e lá estava ela:
- Bárbara? – Falou, surpresa, com os olhos marejados de lágrimas.