Capítulo 56
2497palavras
2023-02-08 10:11
Passei praticamente todo final de semana na casa de Yuna. Fizemos planos para a mudança dela e também para o consultório.
Tínhamos muitas ideias, mas pouco dinheiro. Mas eu era boa com contas e economias. No fim, conseguiríamos... Juntas.
Fui embora com Melody no final da tarde de domingo. Meu carro novo, embora tivesse sido parcelado, gastava menos combustível que o antigo. Então foi um bom investimento. A economia com o valor da gasolina pagava grande parte da parcela.
Eu tinha a opção também de trocar Melody de escola. Claro que ela gostava muito da Instituição onde estudava. Mas encontrar uma mais em conta era uma forma de economizar e ajudar Yuna a conseguir mais dinheiro, para comprar os móveis que precisava para seu consultório. E Melody era uma criança muito compreensiva e se eu explicasse o motivo da troca, ela aceitaria sem problemas.
Minha filha tinha cinco anos, mas a maturidade superava a minha de vez em quando. Certamente isso foi influência de Do-Yoon e Yuna. Porque eles eram muito centrados e focados.
Enfim, minha filha não teve um pai, um avô, uma avó, uma tia de sangue... Mas nunca lhe faltou nada, absolutamente nada. Ele teve todo amor que pudemos lhe dar. E conforto. E foi criada com valores que levaria por toda a vida.
Min-Ji, embora viesse com frequência para Noriah Sul, acabou não criando tanto vínculo com Melody, mesmo minha filha sendo muito socializada.
Há anos atrás, Min-Ji havia me falado que minha mãe gostaria de conhecer Melody e me ajudar financeiramente. Lembro que Yuna disse que aquilo atrapalharia minha independência.
Então, na primeira grande decisão da minha vida, depois da partida de Noriah Norte, eu pedi para ela que nunca mais me falasse sobre os Rockfeller, que eram minha família de sangue.
Depois deste dia, Min-ji nunca mais falou sobre eles, conforme meu pedido. Não mencionou sequer a questão dos problemas financeiros de J.R, sendo que eu soube por Colin.
Min-ji era ética e correta. E levava a sério e de forma literal o que se pedia.
Assim que estacionei, peguei Melody no colo:
- Este gesso pesa bastante. – Observei, fazendo esforço físico além do habitual.
- Quando eu vou poder correr?
- Quando tirar o gesso, docinho. Antes disso, nem pensar. Achei que já andou rápido demais na casa da tia Yuna.
- Eu vou gostar da tia Yuna aqui com a gente.
- Eu também.
- E quando meu pai vir... Como a gente vai fazer? Eu vou dormir com a tia Yuna?
Coloquei-a sobre o sofá e suspirei:
- A gente não sabe muito bem quando isso vai acontecer. Então vamos esperar. O que acha?
- Mas... Meu pai vai estar conosco no Natal. E falta menos de um mês.
- Depois a gente resolve isso, ok?
- Ok. Eu quero chocolate quente.
- Eu também. Vou fazer... Antes de qualquer outra coisa. Depois, você vai tomar um banho de gato.
- Banho de gato? O que é banho de gato?
- Ah, Deus... – Fui para a cozinha, rindo, ouvindo o som da campainha.
Me passou pela cabeça que pudesse ser Guilherme. Eu estava sentindo saudade do menino de olhos cor de mel, que vez ou outra fazia meu coração bater mais rápido que o normal.
- Eu vou atender. – Melody gritou.
- Nem pensar. Espere. Vou pôr o leite no fogo e já atendo.
Pus o leite na panela e liguei o fogão. Voltei sem pressa para a sala e quando vi Min-ji e minha mãe fiquei imóvel, como se minhas pernas tivessem grudado no chão e nunca mais fossem sair dali. Meu coração bateu tão forte que parecia que eu iria enfartar. Parecia um sonho... Ou qualquer coisa, menos realidade.
Calissa pôs os olhos sobre mim. E uma lágrima escorreu em seu rosto. Cinco anos não foram suficientes para envelhecê-la. Ela não mudou nada. Continuava linda e maravilhosa.
Dizer que a presença dela não mexeu comigo seria mentira. Eu só não sabia se sentia tudo aquilo porque estava surpresa com a visita ou se era um sentimento de saudade, misturado com amor, sem explicação.
- Olá... Filha. – Ela acenou, um pouco sem jeito.
- Mamãe, você tem uma mamãe? – Melody me olhou, arqueando a sobrancelha, sobressaindo os olhos verdes arredondados.
Calissa lançou um olhar iluminado para ela, sorrindo docemente. Melody era o tipo de criança que amolecia qualquer coração. Eu só não sabia como agir frente a tudo que estava acontecendo.
- Mamãe? – Melody chamou minha atenção novamente.
Dei um passo, sentindo que poderia desabar. Consegui chegar até o sofá, onde sentei, segurando minhas mãos uma na outra, tentando não transparecer a tremedeira que meu corpo produzia.
Melody abriu meus braços e sentou no meu colo, sorrindo curiosa na direção de Calissa.
- Posso... Sentar? – Calissa pediu.
- Sim... Pode.
Não esperei que ela fosse sentar exatamente ao nosso lado. Mas foi o que fez. Eu senti o cheiro do perfume dela, caro, exótico, com notas amadeiradas e um leve frescor de baunilha.
Olhei para Min-ji, que disse:
- Eu sei que você não queria vê-los... Mas... Calissa insistiu muito. E acho que você precisa ouvi-la, menina.
Foram cinco longos anos longe da minha família de sangue. E eu ainda sentia a dor da partida sem que Calissa tivesse feito qualquer coisa para impedir.
- Quer que eu me retire, senhora? – Min-ji olhou para Calissa.
- Aqui Calissa não é sua senhora, Min-ji. – falei imediatamente – Não sei o que há para ser falado, mas você não deixa minha casa, em hipótese alguma. Porque minha filha está aqui, junto de mim, por sua causa, Min.
- Sabrina tem razão, Min. Você não precisa sair... Até porque sabe todo teor da minha conversa. – Calissa concordou.
- O que a traz aqui? – Fui direta.
Senti a respiração dela acelerada e sabia que estava tão nervosa quanto eu.
- Meu Deus... Você é a coisa mais linda que já vi em toda a minha vida. – Ela tocou a bochecha de Melody.
- Eu sou Melody – sorriu, cativante, envolvente, me dando vontade de mordê-la de tão fofa – E meus olhos são iguais os do meu papai.
Calissa sorriu:
- Os olhos podem ser do seu papai, mas a boca e o nariz são da mamãe. Você lembra muito Sabrina quando era deste tamanhinho. – Ela mostrou a altura com a mão.
- Minha mãe era tão esperta quanto eu?
Calissa riu e eu acabei não me aguentando também.
- Sim, Sabrina também era muito esperta. – Ela me olhou.
- Ela matava animaizinhos de estimação quando criança?
Calissa arqueou a sobrancelha, confusa. Melody pegou a mão dela, levantando:
- Venha ver... Vou mostrar o cemitério.
- Cemitério?
- Medy... Não precisa... – Tentei contê-la.
Mas era tarde. Ela já estava com Calissa pela mão, levando-a por toda a casa até chegar ao quintal.
Enquanto ela falava sem parar com minha mãe, perguntei baixinho para Min-ji:
- O que é isso, afinal?
- Precisa ouvi-la, menina. Acho que já é hora. Sua mãe é uma boa pessoa.
- Eu não disse que não era... Mas ela não fez nada naquele dia. Foi omissa...
- Ela tentou ajudar do jeito dela. Você que negou. Não precisava ter sido assim. Por ela, a separação entre vocês duas nunca teria acontecido.
- E por que ela não veio antes?
- Ela tentou... Mas não achei que você estivesse pronta para o reencontro.
- Como assim, Min? Qual a diferença hoje?
- Você tem sua casa, que comprou sozinha. Está bem instalada com sua filha. Tem seu carro... Um bom trabalho. É independente e não precisa de ninguém. Você venceu, Sabrina Rockfeller. Sozinha.
- Não foi sozinha... Foi com sua ajuda. E de seus filhos.
- Não... Eles só foram o apoio. O resto você fez sozinha. Quando se tem vontade, tudo que precisa é de alguém que a impulsione para frente. Esta foi a função deles na sua vida.
Calissa veio correndo com Melody ainda grudada à sua mão e disse:
- Tem algo queimando no fogão... Mas não sei como desligar.
Saí correndo e desliguei a boca do fogão, com o leite derramado, cheirando fortemente a queimado.
- Mamãe... A gente não vai mais ter chocolate quente? – Melody me olhou.
- Eu faço outro depois, docinho. Não se preocupe.
- Você... Faz chocolate quente... Sozinha? – Calissa se impressionou.
- Sim. E depois vou limpar este fogão que ficou imprestável. – Falei, quase para mim mesma, lamentando o leite derramado.
- O que houve na sua perna? – Calissa ficou curiosa.
- Eu cai da escada. Mamãe tinha ido ver papai e tia Yuna ficou me cuidando. Mamãe sempre diz: “Medy, não corra na escada! Você vai cair!”
- E você não obedeceu. – Ela já imaginou.
- Não... Não obedeci. Então cai e quebrei um osso. Mamãe ficou nervosa e tia Yuna quase chorou. Mas ela é médica e me cuidou. Então não tinha quartos na ala da Pediatria. E nós ficamos no mesmo quarto do Gui. Eu acho que mamãe deveria namorar o Gui... Mas quando meu papai voltar, ela vai precisar deixá-lo. Gui é bem bonito. Minha mamãe disse que papai é mais. O Gui caiu de skate e machucou os braços... Porém ele não quebrou nenhum osso. Ele disse que somos uma boa dupla... – ela riu, balançando o corpinho, fazendo graça – Uma dupla de arteiros.
- Sim... Uma dupla de arteiros. – Calissa concordou.
- Se você é mãe da minha mamãe... Você é minha vovó?
Minha mãe não conteve as lágrimas e abaixou-se na altura dela, envolvendo-a num forte abraço:
- Pode dizer de novo?
- O quê?
- Pode repetir “vovó”?
- Eu posso... Vovó.
Melody a abraçou, sem que minha mãe pedisse. E aquilo de certa forma fez meu coração aquecer-se, ver as duas juntas, sangue do mesmo sangue. O passado de minha Medy tinha a ver com os Rockfeller, por mais que eu negasse meu próprio sobrenome.
- Min-ji... Você... Quer ver o nosso cemitério? – Olhei para ela, pedindo socorro.
Seria impossível falar com Calissa junto de Melody.
- Eu gostaria de conhecer o cemitério que há no quintal, Medy. Poderia me mostrar? – Pediu Min.
Melody soltou Calissa e aceitou, empolgada. Enquanto as duas iam em direção ao quintal, Melody disse:
- Você pode me dar colo? Eu cansei. Minha mamãe disse que este gesso pesa muito. Será que você consegue?
- Eu consigo. – Min garantiu, pegando-a no colo.
Olhei para Calissa. Estávamos frente a frente, depois de cinco anos. E minha filha, a qual meu pai exigiu que eu tirasse, estava ali, falando pelos cotovelos, tornando a vida mais alegre, leve e com sentido.
- Tiveram outro animal depois do hamster? – Perguntou-me.
- Não... Decidimos ficar só com Solitário II.
- Que bom! – Ela riu.
Eu comecei a rir, balançando a cabeça:
- Me saio bem com muitas coisas, mas não com os animais de estimação dela.
- Ela é linda... Perfeita... Cheia de vida.
- É o que eu tenho de mais precioso no mundo inteiro.
- Eu sei. Não houve um dia que eu não tenha chorado por você.
- Não houve um dia que eu não tenha agradecido a Deus pela minha coragem de ter partido em nome dela.
- Nem que seu pai lhe peça desculpas pelo resto da vida, será suficiente.
- E é intenção dele pedir?
- Muita coisa mudou.
- Imagino.
- E... – ela olhou ao redor – Você cresceu, meu amor. Não tem noção do quanto orgulho eu tenho de você. Isso tudo...
- Eu gostaria que você fosse mais direta, mamãe.
- Mamãe... – ela limpou novamente as lágrimas teimosas que começavam a borrar a maquiagem requintada e bem-feita – Não tem noção do quanto eu sonhei com esta palavra vindo novamente da sua boca, minha caçula.
- Eu... – Engoli em seco.
- Posso... Lhe dar um abraço? Por favor... – Ela abriu os braços.
Eu poderia dizer que não. Mas me pus no lugar dela. Se eu pedisse um abraço para minha Melody e não recebesse, seria a coisa mais triste da vida.
Dei um passo e a abracei. Inicialmente não nos tocamos muito. Nossos braços se enroscavam, mas os corpos não se moviam. Até que ela me apertou contra seu peito e deitei a cabeça, sentindo a pele quente e com cheiro que só ela tinha: cheiro de mãe.
Então foi como se todo meu corpo tivesse esperado cinco anos por aquele toque entre eu e ela. Senti as lágrimas escorrendo enquanto ela dizia, repetidas vezes:
- Eu amo você... Tanto, mas tanto...
Ficamos ali, alguns minutos, sem dizer nada, somente experimentando a sensação do reencontro. Depois de um tempo me afastei e limpei as lágrimas, perguntando:
- Mãe, o que você quer, depois de tanto tempo?
- Eu quero você... Junto conosco.
Eu ri:
- Só pode estar brincando.
- Não... Eu preciso de você... E da sua filha. Não posso passar mais um Natal com a família incompleta. Seu pai está doente...
- O que ele tem?
- A J.R Recording não vai bem... Ele está depressivo... E está difícil vencer esta doença.
- Eu fiquei depressiva quando ele me mandou embora, com uma filha no ventre, sem dinheiro, sem roupas, sem celular...
- Ele se culpa por isso.
- E por que não veio ele mesmo se desculpar? Por que a mandou no lugar dele? Faltou coragem?
- Ele não sabe que estou aqui.
- Então você está querendo reunir a família, sem ter certeza de que ele aceitaria minha presença?
- Eu não tenho duvidas de que ele aceitaria, Sabrina. Sinto sua falta... Ele sente... Sua irmã sente.
- Como ela está?
- Bem... Trabalhando bastante. Mas nem com todo esforço ela está conseguindo reerguer a empresa.
- Quer dizer que destruíram minha herança? – Debochei.
- Há alguns imóveis... E isso não sairá do nome de vocês, jamais.
- Jura? Achei que quando eu saísse de casa, estava abrindo mão de tudo...
- Sabe que não é assim.
- Mãe, não há chance de eu me unir a vocês.
- Sabrina... Por favor. Será Natal... Perdoe. Ou mesmo que não perdoe, nos dê o prazer de desfrutar da vivacidade e alegria da nossa neta. Passe as festas de final de ano conosco, na casa de praia da família.
- Eu quero! Quero ir à praia! – Melody falou, enquanto voltava apressada, caminhando com o gesso, sem muita dificuldade, como se tivesse nascido carregando aquele peso, tamanha habilidade que seguia em fazer tudo como sempre fez – Acha que o Papai Noel pode deixar meu presente lá? Ou será que fica muito longe?
- Papai Noel passa em todos os lugares e realiza todos os desejos. E o meu é passar o Natal com vocês duas. – Ela pegou minha mão e depois a de Melody.