Capítulo 31
2117palavras
2022-12-24 14:52
Eu nunca tive um diário, mas sempre passou pela minha cabeça que fosse escritas diárias, onde teria data e descrições do que a pessoa fez naquele dia. E por este motivo quando abri a primeira página fiquei um pouco decepcionada ao ver que não teria nada daquilo. Dizia “Momentos que vivi para recordar depois que eu morrer.” Como assim recordar depois de morrer? Minha tia Emy talvez não estivesse bem quando começou a escrever.
Algumas coisas sem importância, embora revelassem sobre o que ela gostava ou não. Fui até a estante e peguei uma caneta marca texto para grifar o que eu achasse mais interessante. E lá estava a primeira revelação: “Sempre aceitei o casamento com naturalidade, pois mesmo não o conhecendo sabia que meu pai jamais me prometeria a um homem que não fosse adequado. Até porque ele sabe que sou futura rainha de Avalon e toda responsabilidade que tenho e terei por toda a minha vida. Mas aceitar o casamento não significa que eu tenha que amá-lo. Meu coração jamais deixará de pertencer a um plebeu. O meu plebeu. O amarei enquanto eu puder ver o sol nascer de dentro da minha janela, enquanto houver sangue correndo pelas minhas veias. Então terei que me despedir mais cedo ou mais tarde. E espero ter forças para conseguir fazer isso.”
Emy Beaumont era apaixonada por outro homem? Um plebeu? Revirei mais algumas folhas, mas não encontrei nada sobre como se conheceram. Era uma escrita confusa e enigmática, parecendo que ela não queria que fosse descoberto nada sobre ela caso alguém encontrasse o diário.
“Meu marido é melhor do que eu imaginava. Um homem gentil, atencioso e preocupado comigo. Mas quando ele me toca, é em outro que eu penso. Não sei quanto tempo eu vou suportar a saudade que toma conta de mim.”
Emy era muito preocupada em fazer tudo corretamente e assumir Avalon deixando sua marca. Como eu me parecia com minha tia... Em tantas coisas. Eu não sabia muito sobre a minha mãe, mas eu não tinha dúvidas que o sobrenome Beaumont era um peso para quem o carregava, principalmente se fosse mulher.
“Não acho que meu pai tenha morrido por acaso naquele acidente. Stepjan sempre almejou o trono e nunca escondeu isso. Tantas vezes ele tentou me convencer a abrir mão da coroa para ele, se achando mais capaz do que eu. Não entendo porque meu irmão age assim, se nasceu sabendo que era o segundo na linha de sucessão. Tenho medo do que ele possa fazer para me tirar do caminho dele.”
Por quê? Eu não conseguia entender o que se passava na cabeça do meu pai. Qual a importância daquele poder extremo se não pertencia a ele? Teria sido capaz de matar o próprio pai para assumir o lugar que nunca foi dele de direito? Ela não acusava, mas deixava claro que poderia ser ele o responsável pela morte do rei, embora talvez ela não tivesse provas.
Céus, olhei para aquele monte de grifos que fiz e imediatamente me arrependi. O diário de Emy Beaumont era um pouco da história de Avalon e talvez provas de atrocidades que aconteceram na realeza. Como eu pude riscar? Certamente falta de poder colorir papel por toda uma vida. Mas não precisava começar a colorir justo no diário histórico que meu pai daria a vida para ter.
“Hoje eu o revi, depois de tanto tempo. E não pude deixar meu corpo longe do dele. Ele corre pelas minhas veias e não acho que consiga viver longe dele. Fizemos amor por tantas e tantas vezes que eu nem pude contar. Ele me convidou para fugirmos juntos. Eu não posso. Embora o ame, minha responsabilidade com o trono é maior que qualquer coisa.”
Será que todas as princesas de Avalon eram pervertidas? Eu corei lendo aquilo. Minha tia também tinha desejos... E não era pelo seu marido. Eu não conhecia o meu futuro marido, mas não tinha intenção de traí-lo nunca. Por isso minha vontade de conhecer a realidade da vida, como uma garota normal, antes do casamento. Depois que o anel fosse colocado em meu dedo, eu seria só dele... Para sempre, independente de como e quem ele fosse. Era um compromisso com meu reino, com ele e comigo mesma. No entanto se eu soubesse que fui traída, acabaria com ele. E não seria traindo-o, pagando na mesma moeda. Acho que o melhor seria envenenar a comida dele. Eu ri alto. Mas acho que realmente eu era capaz de fazer algo horrível para me vingar caso fosse traída.
“Agora meu marido se foi e eu estou completamente sozinha. Tenho certeza de que foi morto, assim como meu pai. E jamais conseguirei provar que meu irmão está por trás disto. Hoje ele novamente me chamou e tentou me convencer a abrir mão da coroa. Alegou que eu andava muito cansada e por estar viúva talvez minha posse não fosse tão bem aceita. Eu não pude ficar quieta ouvindo tamanha loucura.”
Mais uma vez ela achava que meu pai estava por trás de outra morte. Agora da do marido dela. Se tudo fosse verdade, meu pai era extremamente cruel e só chegou ao poder por ter acabado com todos que estavam no seu caminho, inclusive o pai e a irmã. Meu Deus, eu era a próxima, com certeza!
Fechei o diário e deitei na cama, tentando descansar um pouco. Já estava quase amanhecendo. Mas eu ainda tinha tantas páginas para ler. Aguentaria esperar?
Acordei com o sol batendo no meu rosto e alguém batendo na porta. Demorei para perceber que peguei no sono com o diário sobre mim, do mesmo jeito que eu havia chegado na noite anterior. Fui rapidamente até a lareira e coloquei minha nova relíquia no mesmo lugar que encontrei. Abri a porta. Era Léia, com meu café da manhã.
- Querida... Você está... Péssima. – ela disse enquanto colocava a bandeja sobre a mesa.
Eu até poderia estar horrível, mas cheia de fome. Nem me dei ao trabalho de ir ao toalete. Sentei e comecei a comer um cacho de uvas que estava saboroso. Acho que pela primeira vez eu comeria tudo que me foi trazido.
- A noite foi tão boa que você nem conseguiu tirar a roupa para dormir? Querida, por favor, não me diga que está usando drogas.
Eu ri alto:
- Claro que não, Léia. Acha que eu faria isso?
- Eu... Sinceramente não sei.
Olhei-a um pouco confusa. Ela não confiava mais em mim?
- Eu, fiquei preocupada depois do que houve com as cortinas do seu quarto.
- Eu só queria o sol... – menti.
- Entendo que você talvez esteja passando por uma fase difícil, com a proximidade do casamento. Mas precisa manter-se firme, querida.
- Léia, você conheceu minha tia Emy, não é mesmo?
- Sim.
- Ela... Era apaixonada pelo marido?
- Eu creio que sim. A princesa Emy era muito parecida com você, Satini. Vejo tantas semelhanças que acho que se fossem mãe e filha não seriam tão iguais.
- Você fala física ou psicologicamente?
- Um pouco fisicamente. Mas vocês pensam muito igual com relação a tantas coisas... Talvez pelo fato de ambas serem as primeiras mulheres herdeiras da coroa de Avalon.
- Ela... Chegou a gostar de outra pessoa além do marido?
- Não que eu saiba. – disse Léia parecendo sincera. – Na verdade, acho que é quase impossível isso. Mas... Por que está me fazendo estas perguntas?
- Curiosidade. Você sabe que tenho tentado saber mais sobre minha tia, não é mesmo?
- Sim, eu já percebi. Mas tente manter isso longe do seu pai, por favor.
- Eu sei disto. Aliás, eu sei muito mais sobre o meu pai do que você imagina, Léia.
- Do que você está falando?
- Eu acho que ambas sabemos, Léia.
Mia entrou e Léia me deu um beijo:
- Terminamos esta conversa depois, Alteza. Agora lhe deixo com Mia porque acho que vocês tem bastante que conversar sobre ontem.
Léia fechou a porta e Mia sentou-se:
- Você sequer tirou a roupa?
- Eu estava tão cansada...
- Foi uma noite difícil.
- Contou a sua mãe algo sobre o ocorrido?
- Não... Ainda não.
- Mia, eu vou tentar conversar com meu pai amanhã sobre isso.
- Princesa, você vai contar o que Alexander fez?
- Não... Corre o risco de ele achar perfeito a atitude de seu irmão. Então eu vou ver o que fazer... Na hora decido. Mas não quero mais seu irmão comigo.
- Foi horrível o que ele fez ontem. E a forma como ele a tem tratado é inadmissível.
- Sim.
- Eu ainda acho... Quer dizer, eu tenho certeza de que ele está completamente apaixonado por você. Aliás, eu poderia arriscar que este sentimento vem de uma vida inteira.
- E acha que justifica o que ele faz?
Ela nem sabia o pior que ele havia feito. Se soubesse, ficaria furiosa e sei que não aceitaria. Mas eu não queria deixá-las magoadas... Nem ela, nem Léia. Eu tentaria resolver as coisas de forma que ficasse bom para todos, até mesmo para Alexander, que tinha toda uma vida pela frente.
- Não... Nada justifica o que ele fez. – disse Mia.
Eu terminei meu café e fui para o banho. Mia providenciou minha roupa e pegou minha toalha enquanto esperava eu sair do chuveiro. Eu já estava acostumada com a presença frequente dela no meu banho.
- Princesa, você pretende sair hoje para algum lugar?
- Não. Hoje eu vou descansar, Mia. Mas amanhã à noite vamos ao Rock Bar.
- Você combinou com Samuel algo?
- Sim... Negócios.
- Que tipo de negócios você poderia ter Samuel Leeter? – ela perguntou intrigada.
- Negócios sobre reinos divididos.
- Alteza, tome cuidado.
- Eu tomo sempre. Não se preocupe.
Ela me deu a toalha e eu me sequei, depois colocando a roupa que ela providenciou.
- O que pretende fazer hoje? – ela perguntou.
- Eu... Pretendo ficar no meu quarto, visitar a biblioteca. Estou com uma leve dor de cabeça.
- Biblioteca? O que você perdeu lá? Percebi que ficou praticamente a semana toda lá... E nem me chamou.
- Sempre gostei de ler.
- Eu sei... Mas não tanto assim.
- Para me redimir de ter estado tão distante nos últimos dias hoje à noite vamos combinar um cinema com pipoca e filme chichê?
Ela deu um sorriso largo:
- Amo isso.
- Eu sei... Como nos velhos tempos.
- Combinado.
Mia saiu e eu tranquei-me no quarto novamente. Precisava saber mais sobre o que estava escrito no diário.
Alguém bateu na porta. Quem seria? Eu havia proibido a presença de Alexander naquele corredor. Abri e dei de cara com Beatrice.
- Bom dia, Alteza. – ela disse se curvando.
- Bom dia. – olhei-a intrigada. O que ela queria ali, na porta do meu quarto?
- Será que... Eu poderia entrar?
Eu saí da frente da porta, dando-lhe passagem. Ela ficou de pé e eu apontei a poltrona para ela sentar-se. Usei a outra e a encarei, sem esconder minha curiosidade.
- Eu... Gostaria de explicar que falei com seu pai e ele aprovou a entrevista. Pensei em publicar ainda esta semana, se concordar.
- Acho que depende de meu pai isso muito mais do que de mim. – ironizei, pois ela sabia que era assim, então não entendo porque ainda me perguntava.
- Eu... Não achei correto ele não tê-la recebido naquele dia...
Beatrice devia achar que eu era uma princesa idiota e burra. Talvez fosse bom entrar no jogo dela e saber o que mais ela queria além de dar um herdeiro homem ao rei. Será que ela não tinha ideia que poderia ficar grávida de uma menina? E que talvez meu pai intencionasse matar a filha como pensava em fazer comigo?
- Não foi a primeira vez que isso aconteceu. – eu dei de ombros. – E nem vai ser a última. Eu estou acostumada.
- Se eu puder fazer qualquer coisa para ajudá-la, saiba que estou aqui.
- No que você poderia me ajudar, Beatrice? – perguntei curiosa.
Ela ficou um pouco confusa e corou. Mas depois se recompôs e disse:
- Não quero que me veja como uma inimiga.
- Mas você não é minha amiga.
Ela suspirou:
- Você é difícil... O rei Stepjan me disse que era uma garota doce e gentil.
- Mas eu sou. – falei sarcasticamente. – Como você não percebeu isso?
- Tudo bem... Acho melhor termos esta conversa num outro dia. – ela levantou.
- Beatrice...
Ela me olhou.
- Pensando bem, acho que você poderia tentar me ajudar numa coisa sim...