Capítulo 48
1501palavras
2023-01-18 21:52
1
Maria
O nome dela era Maria. Uma menina magra, usava óculos, os cabelos sempre presos, para onde ia carregava seus livros de história, física e matemática. Eram suas matérias favoritas. Quando entramos na sala do consultório médico, onde ela estava em observação, foram os livros a primeira coisa que vi. Seus olhos vermelhos indicavam que Maria acabara de chorar. Seu semblante era de tristeza. Tinha uns hematomas nos braços e um corte na testa. Vê-la ali me fez lembrar de quando eu estava naquela mesma situação. Do que eu senti, não somente a dor dos machucados, mas a violência e o ódio daquilo que insistem em chamar de apenas uma brincadeira. As memórias ainda eram bem claras em mim, os machucados até poderiam ter cicatrizado, mas as marcas eram eternas. Graças a Deus eu estava forte, talvez porque eu também tivesse pessoas fortes ao meu lado, outra pessoa no meu lugar não aguentaria o que eu aguentei.
Durante esses anos em que estive a frente do instituto florescer eu aprendi a separar as brincadeiras, das agressões. Foi necessário toda uma reeducação, não só comigo, mas com Betânia e Fernandinho, para que eles pudessem ter essa mesma percepção. Eu fiquei feliz em perceber que ele havia entendido as gravidades de suas atitudes, e que havia mudado para melhor. Pelo menos era o que eu achava. Existiam brincadeiras saudáveis, aquelas onde ninguém se ofende nem sai machucado, mas existiam também o outro lado, daquelas pessoas cheias de ódio que perseguiam, zombavam e perturbavam suas vítimas psicologicamente. Esse lado ruim não podíamos chamar de brincadeira e ele existia e destruía quem era vítima dele.
Aproximei-me da cama onde Maria estava deitada. Allan ficou parado na porta. Ela me lançou um olhar de dúvidas, depois sorriu.
— Olá, Maria – falei enquanto segurei em sua mão – Como se sente?
— Não quero voltar para a escola – disse e seus olhos se encheram de lágrimas – aquele lugar me dá medo, me faz perder a vontade até mesmo de estudar.
— Eu te entendo perfeitamente.
Ela ficou meio azuretada, sem entender o que eu queria dizer com aquilo.
— Veja só como a vida é irônica – eu estava disposta a contar a ela um pouco da minha experiência – a mãe da garota que te machucou, era minha colega de turma e por incrível que pareça cometeu contra mim, o que a filha dela comete contra você.
— Um ciclo interminável – ela falou.
— Mas ele pode ser rompido – continuei – Se Morgana for inteligente ela decide se começa um novo ciclo ou contínua nesse.
— Você acha que há salvação para pessoas assim?
— Sempre há – a nossa conversa fluía com naturalidade, como se nos conhecêssemos há muito tempo – Se eu não tivesse fé na humanidade, não estaria aqui, tendo essa conversa com você.
Ela parou, fechou os olhos, pareceu prender a respiração. Soltou um suspiro longo e pesado e então voltou a falar.
—Você se incomodaria de me contar como foi com você? Sabe sofrer bullying e como conseguiu superar?
Que diacho! Depois de tantos anos eu voltaria a falar sobre aquilo, não que eu não me sentisse preparada, mas eu sabia, terminaria aquela conversa em lágrimas. Acenei com a cabeça que sim e sorri para ela antes de começar.
— Eu era gorda quando criança – a palavra “gorda” saiu bem mais natural do que eu imaginava – pesava bem mais do que o normal para as garotas da minha idade. Acho que esse fato não incomodou só a mim, Emília via graça em me humilhar. Fazia piadas com o meu corpo, com o meu jeito quieta e calada. Teria sido ótimo se tivesse ficado só nas piadas.
— Oxente! - ela me interrompeu – e foi pior?
— Muito pior – continuei – Foram dois incidentes que me fizeram parar bem aí, onde você está. No primeiro eu bati a cabeça em um dos bancos da escola, no outro fui enfiada em uma lata de lixo. Tive duas paradas cardíacas e graças a Deus eu não morri.
Houve um silêncio perturbador no quarto. Maria agora voltava a chorar, quando me virei para olhar o Allan, seus olhos estavam inundados. Eu não sabia decifrar seus sentimentos. Tristeza, decepção, arrependimento talvez. Eu não sabia.
—Eu sinto muito – ela se lamentou – como você consegue ser tão forte?
— É só não deixar o ódio te consumir – sorri para ela – claro que ter as pessoas ao seu lado ajuda muito, mas quando eu entendi que o problema não era eu, ou o fato de ser gorda, foi mais fácil de seguir em frente. A força que você precisa, está em você. Quando você entende que o que os outros pensam ou dizem ao seu respeito não define quem você é, mas só mostra quem eles são, a vida flui melhor.
Ela precisou se silenciar para pensar. Então, depois de alguns segundos, voltou a falar.
— Acho que nossas histórias são bem parecidas – ela disse – Eu estava sentada no banco perto do corredor que dá acesso à minha sala, quando elas chegaram. Morgana arrancou o livro da minha mão rasgando a página que eu lia. Depois tirou meus óculos. Eu me levantei e tentei tomar de volta os meus pertences, mas tudo o que ouvi foram risos e piadinhas sem graças – um suspiro, de angústia, cortou sua voz. Ela tentou não chorar – Eu não ficaria tão zangada se tivesse acontecido apenas isso, mas eles não pareciam satisfeitos. Morgana me fez implorar para que ela devolvesse os meus livros e meus óculos também. Me senti humilhada. Então aquelas meninas começaram a me bater, a me empurrar, e puxar o meu cabelo. O coordenador estava do outro lado do pátio assistindo a tudo e não fez nada.
Mais uma pausa. Maria, então enxugou as lágrimas que voltaram a cair.
— Imediatamente eu corri o mais rápido que eu pude – sua voz estava embargada – Foi aí que eu senti aquele peso cair todo em cima de mim, aquela mão puxou o meu cabelo e bateu minha cabeça com força no chão. Eu fiz xixi nas calças. Então Morgana gritava: talvez agora você aprenda a ser menos metida a besta.
Eu chorei junto com ela. Não pude evitar.
— Eu nunca troquei uma palavra sequer com aquelas meninas. Elas não me conhecem, mas agora eu sei muito sobre elas. Como as pessoas podem zombar de mim por ser alguém que ama o conhecimento? – Indagou – é como se a inteligência fosse uma ofensa para eles.
— Embora, você seja mais forte do que eles – continuei – os agressores sempre sentem vontade de demonstrar que são, de algum modo, melhores do que você. O que não é verdade.
Ela olhou para mim e concordou com leve menear da cabeça.
— O que não é verdade também se eu te dizer que será fácil superar todo esse medo de voltar para escola. Que a dor vai logo passar. Mas posso afirmar que você não estará sozinha, e que tudo que eu puder fazer para te ajudar, eu o farei.
— Obrigada – outro sorriso – posso concluir que você teve ótimos amigos que te ajudaram a superar tudo isso.
— Oxente! E como tive – falei com entusiasmo – mainha e painho foram os meus melhores amigos na época em que eu estava nesse mesmo lugar em que você está hoje. Não me abandonaram um minuto sequer. O apoio e o amor deles foram fundamentais para mim.
Então foi aí, ao me lembrar de tudo que eu passei naquela época, que ondas gigantescas de sentimentos invadiram meu coração. Eu não segurei as lágrimas e chorei.
— Eu não sinto raiva da Morgana, sabe – continuou – eu sinto muita pena dela, porque ela não teve a sorte que eu e você tivemos de ter pais tão maravilhosos.
— A pois, e, não é?
Outros sorrisos.
— Morgana também terá a ajuda que necessita – conclui – pode ser que ela seja tão vítima quanto você.
Então conversamos por mais vários minutos. Allan se aproximou e envolveu Maria nas histórias do nosso tempo de escola no arquipélago. Vê-lo contar nossa história me fez ter certeza que nem tudo foi dor e sofrimentos. Fomos felizes, apesar de tudo, fizemos grandes amigos, aprendemos importantes lições. Tivemos uma infância feliz.
Então, deixei Allan conversando com Maria e fui falar com o médico que a atendeu.
— A menina sente fortes dores de cabeça, cansaço, insônia, dificuldade de concentração, náuseas e até mesmo, calafrios. Os pais relatam transtorno de ansiedade social. Por dia tem se recusado a ir para escola – então virou a página de algumas folhas que segurava – sobre a situação dos ferimentos nada muito grave. Recomendei uma observação de 24 horas só para ter certeza.
Quando voltei, Allan já estava no corredor, com os braços cruzados, a cabeça baixa. Parecia preocupado com alguma coisa.