Capítulo 2
2726palavras
2022-12-28 00:43
- Bem – começou Bárbara com uma careta – isso não foi legal.
Cristina, que andara pensando em Miguel, se sobressaltou.
- Quem, Olga?
- Não, não. Estou falando da idiota da Tânia. Ela está sentada de pernas abertas e dá para ver daqui toda a calcinha de vovó dela. Urgh, que nojo. Principalmente porque ela não faz depilação – então, depois de uma pequena pausa - Que tal trancarmos ela de novo no armário hoje, hein? Já faz tempo.
Cristina assentiu distraidamente e olhou para Tânia Vasconcelos. A nerdzinha virgem da turma era uma moreninha de óculos que não sabia arrumar os cabelos e, ainda por cima, roía as unhas. Naquele momento, olhava sonhadoramente para o quadro como uma autista, esperando, assim como o resto da turma, o professor substituto de História. O titular, um idiota tarado chamado Otávio, se acidentara na terça anterior. O troço parecia grave, já que ele estava na UTI.
- Mas também não acho que essa tal de Olga foi tão legal – prosseguiu Bárbara.
Cristina olhou para ela. Bárbara Nascimento era sua melhor amiga naquela merda de colégio, provavelmente sua melhor amiga no geral. E pensar que, se ela tivesse sido um pouco menos rápida, teria perdido Maurício para aquela bela negra de corpo tão bem formado que Cristina às vezes queria matá-la por aquilo.
De qualquer forma, ela vencera. Maurício a escolhera ao invés de Bárbara, e saber daquilo já era suficiente para ter a autoconfiança restabelecida.
- Continue – pediu.
- Bem, se foi tudo aquilo mesmo que você contou, eu...
Cristina franziu brevemente a testa e assentiu. Sim, fora bem aquilo que ela contara. Até contara sobre sua sogra esnobe.
Só omitira a parte que achara seu cunhado muito gostoso
-... acho que os santos de vocês não bateram, mesmo – opinou Bárbara, olhando suas unhas – Digo, ela nem foi tão babaca.
Cristina sacudiu a cabeça e descartou a opinião. Na sua visão, Olga a ofendera desde o momento em que fora mencionada pela primeira vez.
- Talvez ela só tenha ficado com inveja porque eu sou deslumbrantemente bonita – opinou levianamente, sem pensar que talvez fosse verdade mesmo.
Bárbara riu.
- Não mais do que eu – observou sem modéstia alguma.
Cristina sorriu para não bater nela. Porque era fato. Bárbara era mesmo a mais bonita e, para compensar, a menos inteligente das duas. Suas notas eram um desastre.
Foi mais ou menos nesse instante que a turma, quase como uma entidade unida, decidiu que 25 minutos já era tempo demais para esperar sentadinha na sala e resolveu sair. Em dois minutos, apenas Tânia permanecera na sala, ainda com a mesma expressão sonhadora. Grande parte da turma descera pelas escadas em direção ao pátio, ou talvez para os lindos e famosos jardins cheios de flores vermelhas. Cristina, Bárbara e alguns gatos pingados ficaram pelos corredores mesmo. Mas apenas Cristina calhou de estar olhando na direção da porta quando viu o homem se aproximando à distância.
- Olha – disse ela, cutucando Bárbara, começando a sentir um peculiar nervoso na boca do estômago – Sem uniforme e indo para a nossa sala, deve ser o professor. Vamos, estou cansada de fazer nada.
Bárbara a olhou com estranheza.
- Você, querendo ir para a aula? Quem é você e o que fez com Cristina?
- Ah, vá se ferrar.
- Certo, só vou beber um pouco d’água.
Cristina assentiu e foi andando em direção à sala. Chegou bem a tempo de impedir que a porta de madeira batesse na cara dela, empurrando-a para entrar. Ouvindo o rangido, o homem se virou para olhar quem tinha entrado.
E Cristina parou de pensar no momento que os olhos dele encontraram os seus. Era como se tivesse sido enfeitiçada.
Simplesmente porque era o homem mais bonito que ela já vira.
E também porque era ruivo. Cristina não se lembrava de jamais ter visto um ruivo na vida, não naquele país. Só em filmes estrangeiros mesmo.
O homem desviou o olhar e, voltando lentamente ao normal, Cristina pôde avaliá-lo criticamente. Cabelo ruivo médio, tendendo para o escuro, levemente ondulado. Olhos cor de mel. Sardas poucas e espaçadas, principalmente perto das maçãs do rosto. Altura média. Peso médio. Mas Cristina podia resumir toda essa descrição física um tanto fria em uma palavra: gostoso. E ah meu Deus eu quero também seria apropriado.
Cristina ouviu a porta ranger novamente, e, então, um assobio de admiração bem baixinho. Não precisou se virar para saber que Bárbara concordava com ela. E Tânia, que fechara e cruzara as pernas naquele breve instante de sonho, também. Voltou-se para o homem bem a tempo de surpreender seu rubor nas bochechas.
- Não acredito que vocês três sejam a turma completa – disse ele, e sua voz não contrastava com a aparência física. Cristina sentiu um arrepio descer e subir de volta pelo corpo.
- Eles estão no pátio – explicou Bárbara, ainda atrás de Cristina.
- Pode ir buscá-los, por favor?
A porta rangeu novamente, e Cristina supôs que Bárbara tivesse assentido.
O homem colocou uma pasta (que ela sequer notara antes) sobre a mesa. Foi quando decidiu que não podia continuar pensando nele como o homem. Precisava de um nome.
- Qual é o seu nome? – perguntou ela aos atropelos.
Ele levantou os olhos, meio surpreso. Tânia também olhou para eles.
- Digo – prosseguiu Cristina – não posso ter aulas com alguém que sequer sei como se chama.
- Isso é verdade – reconheceu ele – Meu nome é James. James Colbert.
Cristina umedeceu os lábios, pensando que agora o cabelo ruivo fazia sentido.
- Família inglesa? – arriscou.
James negou com a cabeça.
- Francesa – corrigiu – Já ouviu falar de Jean-Baptiste Colbert?
- O economista do mercantilismo francês! – esgoelou-se Tânia, salvando Cristina de ter que admitir que não fazia a mais vaga ideia de quem era o tal sujeitinho.
James olhou para ela e deu um pequeno sorriso. Cristina sentiu uma súbita raiva escaldante e teve um impulso de ir até lá e quebrar a cabeça retardada de Tânia.
- Exatamente – concedeu ele, e depois, apontando para si próprio – Sou descendente direto.
Cristina analisou a informação por um segundo antes de decidir que não se importava muito que ele fosse tatatatataraneto de um babaca famoso.
- Então – continuou James, olhando para Tânia – Acho que você saberia onde a turma está na matéria.
- Terminamos a Primeira Guerra Mundial – respondeu a quatro-olhos enquanto Cristina ia se sentar em sua carteira, ao mesmo tempo em que a turma ia voltando ruidosamente para a sala. Quando o último chegou, ela já observara James o suficiente para saber que queria mesmo o homem. De verdade.
E o que ela queria, ela pegava.
Cristina jamais considerou o fato que, rigidamente falando, Olga nunca fizera nada de errado. Nunca. No primeiro encontro das duas e nos que se seguiram, sempre no ambiente controlado de sua sogra, naquela cobertura imensa que dava para se perder, ela só fora educada e defensiva daquela maneira irritante. Ela, aliás, não segurara a gravidez; outubro estava terminando e ela perdera o bebê depois de uma alegada queda. Por algum motivo, Olga Rachmaninoff e queda não combinavam para Cristina. E também tinha o timing interessante: ela perdera justo no momento em que a gravidez tinha que se mostrar mais aparente. Por esses fatores, Cristina começou a se perguntar se algum dia ela estivera realmente grávida.
Cristina também nunca se perguntou se Olga quisera, de fato, entrar em confronto com ela algum dia. Se tivera algo contra ela. Só assumira que sim depois de sua recusa em ficar irritada com ela. E um convite para entrar em confronto era irresistível para ela. Cristina gostava de briga. Gostava de confusão. E não se importava que aquela implicância fora um tanto gratuita e sem motivo. Não fora com a cara daquela japinha, e isto era o que importava.
Conclusão: Cristina Medeiros precisava destruir Olga Rachmaninoff. E, qualquer que fosse seu plano para isso, precisava de um aliado.
Maurício foi obviamente descartado desde o início. Tinha princípios morais demais. Mesmo assim, ele teve sua utilidade quando reclamara com ela com os altos ruídos que podiam ser ouvidos quando seu irmão estava no quarto com sua namorada. Justamente no dia em que a empregada tinha folga. E a mãe ia fazer seus tratamentos costumeiros. Para completar, ele confidenciou à Cristina que Miguel aproveitava a ausência de Teresa para usar ilegalmente a cama imensa dela para rolar com sua namorada. Hum. Quando o gato sai...
Pouco depois, ela teve a ideia. Arriscada, era verdade, mas, se desse certo, Olga ia querer cavar um buraco para enfiar a cabeça de tanta vergonha. Assim pensando, ela deu um jeito de arranjar de fazer as cópias da chave do apartamento. Foi nessa época também que ela arranjou sua cópia de A Arte da Guerra, de Sun Tzu.
Agora ela necessitava arranjar um aliado.
Só precisou olhar para o lado.
- Bárbara – começou ela.
Bárbara levantou os olhos de seu MP4, onde andara vendo fotos de seu cachorro Scary, um rottweiler que era mesmo muito assustador. Cristina achava cachorros burros, mas os preferia a gatos, aquelas coisas traiçoeiras. Sua mãe tinha uma gata, Milla, que, além de miar como uma desgraçada no cio, ainda miava como uma desgraçada quando Cristina trazia garotos para casa, querendo ferrar com seus esquemas cuidadosamente planejados. Desgraçada.
- Eu.
- Você me ajudaria num troço?
Bárbara deixou o MP4 pra lá.
- Depende. É ilegal?
Cristina sorriu. Eis a coisa bela de alguém ser igual a você: sempre saber como a pessoa ia reagir. Bárbara queria proteger a retaguarda, que, dizendo de passagem, era realmente bonita. Cristina também faria isso se alguém pedisse um favor o qual ela não tinha a menor noção do que era.
- Provavelmente. Mas não pode ser tão ruim.
Bárbara pensou no assunto. Estavam no pátio do colégio, no intervalo entre as aulas. Enquanto Bárbara pensava, Cristina apreciou a visão do professor James até ele sumir ao longe. Ela entrara de cabeça no objetivo de pegar aquele homem, e com tanto empenho que aquilo poderia ser facilmente configurado como assédio sexual. Mas ele resistia e sonsamente se fazia de alheio. Cristina entendia. Talvez ele pensasse que ela fosse uma menor. De qualquer forma, ainda estava no colégio.
Mas, assim que saísse, já tinha um plano para cercá-lo.
- Eu posso ser presa? – perguntou Bárbara inesperadamente, tirando Cristina de seus pensamentos.
- Acho que não.
- É contra a tal Olga Rachman sei lá das contas?
- Rachmaninoff - corrigiu Cristina, assentindo.
- Certo, então – e depois de um breve sorriso hesitante - Seus inimigos são meus inimigos.
- Feito, então. Sabia que podia contar com você, amor.
- Mas quando é mesmo? Esqueci o que você falou.
- Eu não falei – respondeu Cristina, achando graça da distração dela – Mas é na próxima terça, depois da aula. Prepare-se.
Bárbara deu um risinho e voltou sua atenção para o MP4. Cristina ficou olhando para o além e viajando.
A única coisa que ela lamentava naquilo era Miguel. Mas quem tinha mandado o cara ficar no meio do tiroteio, de qualquer forma?
Os dias se arrastaram até terça-feira, o dia combinado. Cristina passou o final de semana repassando o plano nos mínimos detalhes com Bárbara. Até fez um mapa estratégico. Quando a aula acabou, mataram um pouco o tempo esperando a hora correta antes de pegar o táxi.
Quando saltaram perto do prédio e Cristina pagou o táxi com seu suado dinheirinho economizado, ela já estava no pico do seu nervosismo. Aproximava-se a parte do plano que ela mais temia que falhasse, aquela que podia botar a perder toda a preparação. Ela temia que toda a sua cara de pau não fosse o suficiente para aquela parte. Mas, ali, deu tudo certo. Ela passou pelo segurança e pelo porteiro usando a mesma técnica: sendo educada e agindo naturalmente. Nem acreditou quando chegou ao elevador, sempre com Bárbara em seus calcanhares.
Então elas chegaram à beira da parte crítica.
Assim que as portas se abriram, Cristina olhou de um lado para o outro do corredor do sétimo andar. O que menos queria é que um vizinho fofoqueiro ferrasse com o plano. Depois, foi na ponta dos pés até a porta e encostou o ouvido nela. Silêncio. Mas, se Maurício estivesse mesmo certo, ela realmente não ouviria nada, já que a suíte ficava no fim do apartamento. Afastou-se e começou a cutucar a bolsa à procura da câmera.
- Você sabe o que tem que fazer, não?
- Sei – confirmou Bárbara, mas estava um pouquinho pálida.
- Minha vida tá na tua mão – sussurrou Cristina rispidamente - Vê o que faz. Segue o plano. Quer recapitular?
- Não precisa, eu sei.
A voz dela saiu um pouquinho melhor daquela vez. Olhando pra ela, Cristina lembrou.
- Droga, quase me esqueci das máscaras.
Essa seria sem dúvida uma falha extrema. Pegou as máscaras e as luvas e elas as colocaram. Quem as visse naquele momento acharia que eram duas criminosas. Ou que não iam fazer boa coisa.
Realmente, não iam.
Cristina passou a câmera para Bárbara.
- Pronta?
- Tô, porra!
- Lembra da posição dos quartos?
- Cristina! – exclamou Bárbara, já decididamente exasperada.
- Certo, só pra ter certeza. Minha vida tá...
-... na minha mão, sei. Vamos logo.
Cristina respirou fundo. Pegou as chaves. Enfiou a chave na porta. Girou a chave. Abriu a porta.
Talvez elas tenham ficado um segundo a mais paradas. Mas não importava. Cristina queria sentir o território. Continuou não ouvindo nada. Ela foi invadida por uma súbita apreensão. Será que eles estavam ali?
Vendo a indecisão dela, Bárbara tomou à frente e elas avançaram.
Passaram pelo quarto de Miguel. Vazio. Passaram pelo de Maurício. Também nada. Aparentemente a dica de seu namorado estava se confirmando: eles estavam no quarto de mamãe, no mesmo colchão sagrado onde os meninos tinham sido concebidos, e onde os dois estavam tentando, aparentemente, conceber outro filhote na cama king da mamãe. Seres humanos eram mesmo tão entediantes.
Quando se aproximaram da suíte, Bárbara acelerou o passo, ao mesmo tempo em que Cristina se encostava à parede para sumir de vista ao mesmo tempo em que a amiga saltava para dentro do quarto aberto com a câmera a postos.
Claro que ela podia ter feito tudo aquilo sozinha. Claro que sim. Ela e uma máscara. O problema era que Cristina, mesmo com toda a implicância, ainda não conhecia Olga direito. E se ela, quando visse a invasão insólita, conseguisse superar os segundos desconcertantes e desse uns golpes de kung fu bem típicos dos japoneses? Não era improvável. Se tal coisa acontecesse, Bárbara era quem ia se ferrar, e Cristina ia fugir correndo. Tudo sem ser identificada. Nem mesmo pelo cabelo que por acaso fosse entrevisto.
Era por isso que Bárbara estava ali, para levar um golpe de kung fu que por ventura viesse. Sorte que ela não era de pensar profundamente sobre nada.
Cristina gostava muito dela, mas não ia fazer o trabalho sujo. Nem aguentar suas consequências.
Mas voltando dos devaneios.
Bárbara tirou a foto. O flash disparou. Cristina ouvia a voz atordoada de Miguel perguntando que merda estava acontecendo. Foi então que Bárbara saiu correndo.
Antes que tivesse tempo para sair correndo também, finalmente aconteceu. Cristina estava quase no fim do corredor quando ouviu.
Olga Rachmaninoff perdeu a paciência. E foi de uma maneira bem histérica – e satisfatória.
- Cristina, sua desgraçada! Eu sei que você está aí!
Mesmo já no fim do corredor, ela ouviu bem a madeira rangendo quando alguém se levantou, finalmente saindo do estado de atordoamento com o qual ela tanto contava, e correu ainda mais, quase batendo com Bárbara no corredor antes das duas entrarem desembaladas no elevador. Sorte ele ainda estar no andar.
Ah, como ela adorava atingir aquele ponto de fissura das pessoas.
- Cristina.
Ela se virou para Bárbara. As duas estavam sem fôlego.
- Sabia que seu cunhado é muito bem dotado?
Cristina ficou sem resposta por alguns segundos.
- Não sei o porquê de eu já saber disso – comentou ela finalmente –, já que ele é diferente em tudo do irmão dele.
As duas se entreolharam e começaram a rir.