Capítulo 12
2758palabras
2023-09-21 00:21
Tinha sido uma manhã estranha, no mínimo diferente e completamente fora da minha rotina. Acordei com braços fortes me rodeando, me abraçando apertado contra um corpo grande e quente. Não precisava me virar para ver o belo rosto, mas eu queria muito admirar por um pouco mais de tempo o homem que tinha me deixado queimando de desejo com apenas um toque.
Me virei dentro de seus braços e ele apenas moveu o braço me dando espaço para mudar de posição, mas sem nunca acordar, nem mesmo abriu os olhos ao fazê-lo, parecendo acostumado de mais com aquela situação.
Encarei diante dos meus olhos o rosto sereno adormecido, os cabelos dourados brilhando ainda mais diante da luz que entrava pela fresta da janela, a barba cheia emoldurando os lábios, escondendo boa parte daquela boca deliciosa.

Me dava uma vontade imensa de segurar com força seus cabelos e devorar aqueles lábios, mas me contive e continuei minha analise, o peito descoberto subia e descia, calmo em seu sono, as tatuagens bem intrincadas me chamando a atenção e mais uma vez me dando vontade de percorrer minhas mãos por seu corpo todo.
Decidida a não atrapalhar o sono do pobre homem, que teve uma noite de cão socorrendo a mãe, eu me esquivei devagar até estar fora de seus braços e longe do seu calor.
Fui até o banheiro tentando calcular o que faria para o café, mas minha cabeça parecia mais ocupada com lembrar da noite passada. As mãos grandes sobre meu corpo, a vontade quase insana de transarmos de uma vez por todas, mas ao mesmo tempo não queríamos despertar o pequeno, era uma loucura, uma mistura de fazer o que desejávamos e manter a sanidade.
Isso ajudou a intensificar tudo, como se o mero detalhe de ser ele já não fizesse tudo ainda mais intenso, apenas um toque, um impulsionar de quadris parecia nos deixar mais a beira do precipício, a um fio de gozarmos ainda vestidos.
Meus lábios estavam inchados por passar muito tempo beijando aquele homem bruto, a barba fez um ótimo trabalho de marcar minha pele, que mesmo negra mostrava aqui e ali os resultados de ter aquele homem. Tinha certeza que a marca na curva do meu pescoço era um resultado de sua boca.
Eu sorri para o maldito espelho como uma adolescente boba. O que estava acontecendo comigo?

Quando abri a porta me deparei com a cabeleira loira, mas dessa vez era a mini versão dela.
— Will querido, já acordado?
— Eu acodo cedo, mas papai só no almoço. — encarei a figurinha a minha frente ainda esfregando os olhinhos. — Tô com fome. — ele falou sem a timidez de antes.
— Que tal você lavar o rosto e a gente correr na padaria pra ver o que tem de bom por lá?

Rapidamente ele acenou com a cabeça concordando e substituindo meu lugar no banheiro. Aproveitei o tempo para mandar uma mensagem para Erik, avisando que chegaria atrasada hoje. Não queria estipular um horário ou colocar eles para fora.
Enquanto caminhávamos na rua Will não parava de falar, dessa vez me contando como seu pai nunca acordava para tomar café, o que a avó fazia e falando mais da sua grande família. Deixei que ele escolhesse o que queria comer e então voltamos com as sacolas.
Quando entrei ao lado do tagarelante demos de cara com o pai dele nos encarando, senti meu rosto se esticar quase que em automático quando os seus olhos encontraram os meus, mas o homem parecia diferente de ontem e não retribuiu o sorriso.
Durante todo o café ele parecia se manter distante, longe por algum motivo que não me disse em nenhum momento. Não era como se estivesse indiferente, eu via seu rosto me procurando, os olhos me esquadrinhando, mas ele não se aproximou ou disse mais do que algumas palavras desinteressadas.
Depois que eles foram embora eu corri e tomei um banho, já me arrumando para ir ao restaurante. Não podia ficar longe do meu bebê por muito tempo. O dia estava calmo, ainda era uma quinta perto do meio dia, tinha deixado o comando com Erik, meu subchefe, eu não queria atrapalhar o andamento das coisas.
Aproveitei para discorrer o que tinha acontecido para minha amiga, Ana, a atualizei de tudo desde o momento em que ela saiu ontem.
— Vocês dois vão acabar botando fogo na cidade, já falei que do jeito que aquele homem te olha se fosse comigo eu já teria sentado naquela cara lindinha. E agora você me conta tudo isso... — ela fez uma pausa dramática balançando a cabeça negativamente. — Sinto muito, mas se você não der pra ele eu vou! Não tem como!
— Talarica! — empurrei seu ombro gargalhando de sua cara de pau em assumir sempre o quanto o achava um tesão.
Afinal qualquer mulher que tivesse uma boa visão veria o mau caminho que ele é.
— Chefinha, o senhor e a senhora Silva estão ai fora querendo falar com você. — Erik falou entrando na cozinha equilibrando dois pratos e alguns copos.
Sai da minha área segura e cumprimentei algumas pessoas que me lançaram um oi, ou sacudiram a cabeça em minha direção, até chegar a mesa do doce casal de velhinhos. Eles sempre vinham aqui, em algumas semanas mais de uma vez e sempre, sempre, faziam questão de me dar os cumprimentos.
— Boa tarde, Senhor e Senhora Silva — falei me abaixando próximo a eles que já sorriam em minha direção. — E então o que acharam do salmão hoje? Eu provei um pouquinho lá na cozinha e acho que Erik está melhorando muito.
Nos três gargalhamos, Erik estava comigo há algum tempo já e eu amava o trabalho do menino. Sim eu tive que quebrar seus maus hábitos aqui e ali, ele estava pouco familiarizado com todos os aparatos caros e nunca tinha ido a escola de culinária quando nos conhecemos, mas ele tinha um talento natural.
Como diria dona Nena: escola nenhuma ensina amor por cozinhar!
Mas ele tinha começado a estudar desde que veio pra cá e estava adorando muito.
— Chama o garoto, deixa a gente elogiar ele pessoalmente. — eu sorri mais abertamente, sabendo o quanto ele adorava isso e que não era nenhum pouco modesto.
— Ana, chama o Erik lá dentro, diz que alguns clientes querem falar com ele. — pedi assim que passou.
Fui me afastando e um casal ergueu a mão chamando minha atenção.
— Boa tarde. Bem vindo ao Cantina da Nena. É a primeira vez aqui, não é? — eu costumava gravar a maioria dos rostos por aqui. Em especial quando tinham sorrisos tão alegres na minha direção. — O que estão achando?
— É a primeira vez aqui, tão elegante e acolhedor. E a comida é maravilhosa, nós queríamos falar com o chefe se possível. — a mulher alegre disse e eu sorri concordando, adorava quando teciam elogios ao lugar que eu deixei com a cara da minha avó.
— Eu sou a chefe Maria.
Foi só ouvir as palavras para que o rosto deles mudassem de expressão e a confusão tomassem suas feições. Mas me mantive com sorriso, estava acostumada com a surpresa em algumas pessoas, às vezes pela idade que aparento, ou até por ser mulher se chocam por eu ser a chefe.
— Você que fez essa comida? — o homem questionou incrédulo e aquilo fez meu sorriso escorrer do rosto.
— Não, mas...
— Ótimo, pode chamar quem fez! — a voz me cortando, altiva, me incomodou e eu respirei para não rodar a baiana aqui mesmo.
Aproveitei a proximidade de Erik e o puxei pelo braço sem tanta delicadeza, pobre coitado ficou até assustado.
— O casal quer te cumprimentar pela comida. — ele me olhou incerto e eu entendia, não tinha costume de ter a voz tão dura e o olhar severo sobre ninguém.
Mas parecia que parte de mim sentia para onde estava indo essa nossa conversa.
— Sim rapaz. Meus parabéns, sua comida é ótima e seu restaurante maravilhoso! — a voz irritante do homem voltando a ser alegre diante a figura de Erik, e a imagem dele lhe estendendo a mão, fizeram meu coração retumbar alto me deixando mais nervosa.
— Sim, o lugar é adorável querido. Bem no meio da cidade grande fazer algo tão familiar... é perfeito.
Erik estendeu a mão, aceitando as felicitações, mas rapidamente corrigiu os dois.
— Obrigada, sim o lugar é maravilhoso. Mas a dona é a Chef Maria, eu sou só o subchefe dela.
Novamente espanto assentiu sobre eles e eu semicerrei os olhos desafiando qualquer um dos dois continuar a dizer qualquer coisa, mas tudo o que saiu foram sorrisos amarelos.
— Obrigada, o senhor e a senhor Silva estão te esperando também. Parece que dessa vez você acertou no salmão. — indiquei o casal doce que acenava para ele tentando voltar ao meu espirito habitual de calma. Querendo voltar ao meu estado essa manhã, felicidade e contentamento.
Já estava me afastando e ele já alcançava o casal quando os sussurros chegaram até mim, fazendo minhas entranhas revirarem e o sangue ferver em minhas veias. Certas coisas a gente quer fingir que não ouviu, a gente deseja do fundo do coração que nunca tivessem sido ditas em primeiro lugar, porque uma vez que se é colocada para fora não tem volta.
— Você acredita nisso? Uma mulher e negra? — a voz do homem indignado chegou aos meus ouvidos cessando meus passos.
— Esse mundo está perdido. Como ela teria condições pra isso depois de sair da favela? Lugar que nunca deveria ter saído pra começar a conversar.
— Nunca deveriam ter saído da senzala você quer dizer, é por isso que tudo virou uma várzea, ninguém sabe mais seu lugar. — a revolta me batia e eu fechei minhas mãos em punho mantendo a calma. — Primeiro mulher dona de um estabelecimento ainda chefe de cozinha, mulher sabe só cozinhar em casa e olhe lá! — a frase que deveria ter feito a mulher dele lhe dar um belo soco na cara, não pareceu surtir esse efeito nela que se permitiu agregar algo mais.
— E ainda por cima pretinha, você viu a audácia dela em falar com a gente? — racistas e misóginos, no restaurante de uma negra feminista, não prestou nem preciso dizer!
— Como é que é? — falei alto o suficiente para atrair a atenção de todos. — Repete o que você falou ai? — os rostos rapidamente assumiram uma palidez a mais e os olhos se arregalaram diante da constatação de que tinham sido ouvidos. — Vamos, repitam o que disseram eu e todos estamos esperando! — gritei me aproximando dos dois pedaços de lixo sentados na minha cadeira.
— Foi o que você ouviu ai. — ele falou um tanto incerto e a mulher tentou pará-lo segurando sua mão, mas diante dos olhares ele decidiu dar uma de macho e não se retrair. — Não somos obrigados a gostar disso.
— Disso o que? Uma mulher dona do próprio negócio? Ou uma mulher negra, para quem vocês queriam tecer elogios até descobrirem meu sexo e minha cor? — gritei chegando mais perto e intimidando eles. Já tinha sofrido racismo, tinha visto minha família passar por isso, não tinha a menor chance disso acontecer no meu restaurante e passar batido. — Vocês estão no restaurante de uma mulher negra, comendo a comida feita por uma mulher negra, sentando na cadeira de uma mulher negra, vocês estão pagando para vir aqui e prestigiar o restaurante batizado em memória de uma mulher negra!
— Você me dá nojo. — a mulher disse se erguendo da cadeira e tentando me peitar, mas eu não ia baixar a cabeça, não agrediria uma mulher mais velha, mas se ela ousasse continuar ia ter que desembolsar muito dinheiro.
As vaias que se seguiram contra o casal fizeram o homem se juntar a mulher, as mãos dadas, os olhares assustados e a vergonha de estarem sendo gravados por um punhado de celulares sacados pelos clientes.
— É isso mesmo! Você me da nojo sua negrinha. — ele enfiou a mão no bolso puxando a carteira e desajeitadamente tentava tirar dinheiro. — Você deveria estar limpando banheiros! Já que pessoas estupidas quiseram libertar seu povo nojento, pois o lugar de vocês é na sarjeta, limpando o chão que pisamos! — o homem teve a ousadia de continuar a discursar e destilar ódio.
— Você pode sair daqui agora! Sumir imediatamente antes que eu chame a policia. Ou esqueceram que racismo é crime? Está tudo gravado aqui, vamos ver com quantas notas vocês vão aprender que lugar de mulher é onde ela quiser! Lugar de gente preta é onde a gente quiser!
Ele jogou algumas notas na mesa, com as mãos tremulas e já sendo puxado pela mulher. Aposto que medo em ver alguns clientes se juntarem a mim em pé, meus funcionários também já estavam ao meu lado.
— Pode pegar seu dinheiro de bosta, você vai precisar para pagar um bom advogado. — ergui ainda mais o queixo e apesar dos meus um metro e cinquenta eu me sentia como uma gigante, prestes a esmagar um ratinho.
Era como se o sangue, o ódio, o desejo de vingança, de reconhecimento e de afirmação como pessoas, de todos os meus ancestrais corressem em minhas veias. Sentia o grito daqueles que lutaram, o sangue daqueles que morreram e apanharam por isso, o ar e a fome daqueles que foram silenciados, o grito preso no peito de milhares de pessoas negras, tudo isso correndo a cada batida mais forte do meu coração.
Eu não estava sozinha, nós nunca estivemos e nunca estaremos sozinhos!
Acuados os dois saíram para a calçada, andando de costas, enquanto ainda gritávamos, alguns soltavam vaias e os enxotavam com a mão.
— A policia já está chegando! — Erik disse ao meu lado, os rostos dos dois ficaram em alarme e eles se preparam para correr, mas todos na rua pareciam estar ligados na confusão que se formava a frente do meu restaurante.
— Se vocês foram adultos o suficiente para me peitar e gritar aquilo lá dentro, vão ser também para ir a delegacia, responder ao processo e pagar uma indenização bem gorda pra Negrinha aqui! — gritei quando algumas pessoas os cercaram impedindo que eles escapassem, mesmo sabendo que não teria problema nenhum em encontrá-los com os vídeos. — Não era o machão lá dentro? Agora vai chorar? — o homem parecia prestes a se debulhar de lágrimas em desespero, mas eu só queria rir.
A rua havia parado para assistir, as portas dos estabelecimentos estavam cheias de clientes e funcionários curiosos. Eu não vi quando ela se aproximou, mas ouvi quando Deb se sobrepondo a multidão.
— Vamos lá meu chapa, você está famoso na internet. — gritou sem se importar e eu me assustei. — Alguém aqui estava transmitindo desde que ela começou a gritar com você e todo mundo ouviu o que vocês dois falaram de mulheres e pessoas negras. Depois dessa não sei o que vai ser mais barato, fazer uma plástica para não ser reconhecidos ou se mudar pra lua, já que lá é o único lugar que ainda não tem mulheres e negros. — ela ergueu a mão no meio da multidão acertando a minha como adorava cumprimentar.
A sirene da policia se sobrepôs as risadas e rapidamente as pessoas começaram a se dissipar dando espaço para os policiais. Por sorte eram policiais que estavam sempre pelo bairro e não foi difícil de explicar.
Rapidamente ouvi um barulho que estava se tornando muito conhecido, o ronco daquele motor que ativava as borboletas ridículas dentro de mim e ele já estava correndo em minha direção.
— Com você tem sempre policia envolvida no meio, não é? — Miguel chegou perto enlaçando minha cintura com seu braço firme e beijando meus cabelos, sem se importar com ninguém a nossa volta dessa vez.
Deb e Ana me lançaram olhares nada discretos e eu sabia que teria muito o que contar mais tarde, mas agora eu tinha dois escrotos para denunciar. O sexo quente poderia servir de comemoração e nada melhor que um orgasmo para brindar a luta contra o patriarcado, um homem branco pra sentar em nome do foda-se o racismo!
— Me leva até a delegacia? — perguntei erguendo a cabeça um pouco mais para encará-lo.
— É pra isso que estou aqui!