Capítulo 4
1754palabras
2023-09-21 00:14
Senti meus lábios me traírem se abrindo em um sorriso ao lembrar de seu ataque.
— Eu sabia! — Lisa gritou batendo na madeira como se tivesse acabado de falar truco.
Decidi ignorar as duas malucas e tratei de correr no atendimento, a banda tocava a todo vapor e as pessoas não pareciam a fim de ir embora tão cedo.

Trabalhei duro madrugada a dentro, não tendo tempo pra respirar ou voltar ao assunto com as meninas, mas isso não impediu que minha mente girasse em torno do rosto delicado de pele negra, os cachos castanhos e os olhos incisivos.
Mas foi só quando entrei em casa, finalmente em meu refúgio, já às seis horas da manhã que me permiti pensar em seus lábios, o gosto deles na minha boca. Chocolate e whisky, não tinha como esquecer!
Agora toda vez que a visse passar pela rua iria pensar no sabor mais estranho e delicioso que poderia sentir vindo de seus lábios.
Foi com esse pensamento que eu peguei em um sono profundo.
— Papai, papai. — ouvi aquela voz que me trazia alegria na mesma proporção que me deixava louco. — A vovó disse que tá na hora.
Enquanto falava Will não parava de pular em minhas costas, ele sempre me acordava desse jeito? Sim. Algum dia tinha se cansado? Não.

— Hora de que? — resmunguei ainda com o rosto apertado contra o travesseiro.
— Hora de você papa.
— Que horas são? — Will estava aprendendo a ver as horas no relógio de ponteiro e eu adorava incentivá-lo mais ainda.
— O ponteiro grande tá... — pensou por um tempo parando de pular para sussurrar os números que apontavam até ter certeza — Doze! — comemorou me arrancando um sorriso amassado.

— E o pequeno? — meu filho pensou e pensou, quieto por um bom tempo, então pulou em minhas costas uma última vez antes de correr gritando:
— O papai comeu!
Joguei o lençol para o lado e fui atrás do monstrinho que corria pela casa, sacudindo a cabeleireira loira e gargalhando. Assim que o peguei jogando seu corpo no ar seu grito um misto de surpresa e felicidade me fez gargalhar.
— E agora vou devorar você! — rosnei tentando soar como um animal e mordi sua barriga.
Will ria e se contorcia em meu colo com as cócegas que causava. A gargalhada mais gostosa que eu já tinha ouvido, antes disso todas eram apenas boas gargalhadas no máximo, mas a primeira vez que ele sorriu pra mim foi como se o mundo inteiro virasse do avesso. Era tudo sobre ele desde então.
— Que tal se as duas ferinhas esfomeadas vierem logo para a mesa? — dona Magda chamou saindo da cozinha e indo direto para o jardim nos fundos da casa. — Estão todos esperando.
Minha mãe tinha sido minha parceria a vida toda, mas quando me vi viúvo e com um filho no colo ela foi meu alicerce, meu apoio. Era a mulher de nossas vidas!
Quando saímos para o jardim, seguindo a matriarca, encontramos a galera toda reunida. Todo pessoal do moto clube que meu pai praticamente fundou estava ali.
— E ai cara, pensei que não ia acordar! — Jonathan, carinhosamente apelidado de Brutos e atual presidente do clube falou.
— Tem ideia que horas fui dormir? — murmurei dando um tapinha em seu ombro, disfarçando apenas para chegar mais perto e lhe dar uma chave de braço e arrancá-lo de seu lugar a mesa.
A maioria de nós ali tínhamos crescido juntos, não era atoa que agíamos como um bando de irmãos malucos em volta da mesa, enquanto minha mãe e mais umas old lady nos encaravam enquanto rolávamos no chão.
— Já chega! Tá já deu! — Brutos gritou batendo em meu braço, mas foi só eu soltá-lo para que ele se jogasse novamente no chão em cima de mim. — Fala a verdade você estava era sonhando com alguma gostosa. — o desgraçado provocou enquanto se esfregava em mim me apertando no chão.
— Não sabia que estava rolando uma convenção de meninas! — Denis, o vice presidente do clube, se juntou a ele me esmagando no chão.
Os dois homens eram enormes, sem mais, Denis tinha por volta de um metro e oitenta e Brutos com seus quase dois metros, isso sem falar nos músculos que cultivavam com muito afinco.
— Chega os três, a comida está esfriando! — mamãe gritou e rapidamente a bagunça de cabelos e músculos se desfez.
Nos sentamos todos a mesa, as crianças ficavam na mesa menor ao lado e os quase adultos juntos.
Cada um com sua mulher, menos eu e Brutos, éramos os únicos solteiros do grupo. Brutos por não querer compromisso com nenhuma mulher, eu por estar muito ocupado sendo viúvo e criando um filho.
— Jonathan, pode dar graças meu filho. — mamãe ordenou gentilmente.
Ela era a única que tinha direito de chamar o traste assim, afinal ela tinha o visto nascer e crescer, limpou a bunda dele mais vezes do que qualquer mulher vai chegar perto de lá.
Ele não discutiu, apenas baixou a cabeça e deu graças pela família, pelos amigos, pela comida e bebida. Amém! Aqui nessa mesa não importava se acreditávamos em algum deus ou não, sempre tínhamos que ser gratos pelo que temos.
"Agradeça como uma demonstração de amor a todos a sua volta", foi o que a mãe de Brutos nos disse quando estávamos no auge da rebeldia e não entendíamos como fazendo tudo o que nossos pais faziam, chegava nesse momento e eles fechavam os olhos e agradeciam. Nunca mais discutimos.
— Ei tigre. — Denis me chamou pelo meu velho apelido, que apenas eles insistiam em continuar usando. — Ouvi que você ajudou a prender assaltantes ontem. — falou chamando a atenção de todos.
— Não foi tudo isso. — murmurei já vendo o olhar de minha mãe do outro lado da mesa me encarando com uma cara preocupada.
— Ouvi que estavam até armados cara, acho que foi algo sim. Desembucha!
— Desde quando você sai por ai bancando o herói? — Ana questionou terminando de fazer o prato do filho dela com Denis.
O garotinho tinha dois anos a mais que Will e eram amigos inseparáveis.
— O que queriam? Que eu deixasse a mulher ser assaltada e possivelmente morta? — resmunguei me servindo.
— Eu sabia que tinha mulher na parada! — Brutos gritou. — Vai quem é a maluca da vez?
Dei risada de sua pergunta, pois maluca era a palavra que podia definir ela. Enfrentando ladrões com uma panela, me beijando e correndo em seguida, ela só podia ser maluca!
— Isso define bem ela. É a dona do restaurante do outro lado da rua, três homens invadiram e tiveram a má sorte de encontrar com ela.
A imagem do homem desacordado invadiu minha mente, mas antes que eu conseguisse conter meus pensamentos voaram para ela dançando no bar horas depois, como se nada tivesse acontecendo. O vestido floral esvoaçando enquanto ela rodopiava com Débora ao som de AC/DC. Os cabelos cacheados sacudindo junto dos seus passos e as bochechas levemente vermelhas, não sei se pela bebida ou o calor.
Maria destoava totalmente do lugar e das pessoas a sua volta, mas era como se algo atraísse meus olhos para ela ali, tão livre e entregue, cantarolando algumas frases da música sem notar o rosto machucado.
Wind of Change tocou no fundo da minha mente, ignorando todo o barulho e a música a nossa volta, enquanto eu só tinha olhos para ela, que parecia exatamente isso: um vento de mudança.
— E o que aconteceu? — Brutos insistiu me trazendo de volta ao presente.
— Quando ouvi um tiro corri pra lá, ela já tinha derrubado um deles com uma panela. Mas havia mais dois, então desarmei um deles e os coloquei pra dormir.
Alguns assoviaram, ou ergueram as long necks em comemoração gargalhando.
— Ganhou a garota? — Laura lançou a pergunta que todos queriam fazer ainda com um sorriso estampado no rosto.
Ela era irmã de Brutos e apesar de todos os esforços dele para afastá-la dessa vida do clube, a mulher sempre voltava.
— Porque todo mundo continua me perguntando isso? Não, ela agradeceu e tomou umas no bar, antes de eu deixá-la em casa e dar a noite por encerrada!
Vários murmúrios de descrença me rondaram, ninguém acreditava na minha ação despretensiosa e inocente. Eu devia estar mesmo me comportando como um puto e essa era a comprovação. Mas resolvi ignorar apenas encarando minha família maluca e disfuncional enquanto almoçávamos.
Muitos anos atrás James Smith veio fugido dos Estados Unidos, sendo obrigado a deixar para trás seu antigo clube enquanto era caçado pela polícia de quase todos os estados de lá.
Assim que chegou aqui ele não perdeu tempo e começou a rondar por São Paulo em busca de pessoas para participar do novo clube de motoqueiros. Oferecendo dinheiro diante de uma crise financeira que o povo passava aqui não foi difícil para atrair meu pai, Pedro e Benício, o pai de Brutos.
Logo eles entenderam que a forma de ganhar dinheiro dele não era tão legal, mas eles não se importaram. Não demorou e os três tinham montado aqui a primeira sede brasileira dos Devil's Head MC.
Todos nós seguimos os caminhos dos nossos pais, era bom se sentir poderoso, correndo perigo. A adrenalina correndo por suas veias pode ser bem sedutora e viciante.
Mas então quando Luna morreu durante o parto eu soube que não poderia continuar seguindo nessa vida. Will foi colocado em meus braços e uma adrenalina totalmente diferente correu em minhas veias, eu já tinha visto pessoas morrerem na minha frente, membros do clube e mesmo que soubesse que ele ainda teria minha mãe e que ninguém do clube viraria as costas pra ele, não quis pagar pra ver meu filho ficando órfão.
Foi por ele que me reuni no com o clube e comuniquei minha decisão, todos respeitaram e entenderam, depois de uma votação unânime Denis assumiu meu lugar como vice-presidente e tudo seguiu como está até hoje, quatro anos depois.
A tarde passou tranquila enquanto comia e bebia, conversando e assistindo as crianças brincando no quintal. Mas conforme a noite avançou me peguei pensando novamente naqueles olhos cor de mel, os cabelos cacheados, a pele negra e os lábios com gosto único.
Pela primeira vez em anos me senti torcendo para ver uma mulher no dia seguinte.